En defensa del neoliberalismo

 
 

A pretexto do combate à globalização

RENASCE A LUTA DE CLASSES

Fórum Social Mundial de Porto Alegre,
berço de uma neo-revolução anárquica

 

Gregorio Vivanco Lopes, colaborador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP

José Antonio Ureta, pesquisador da Société Française pour la  Défense de la Tradition, Famille et Propriété – TFP

Editora Cruz de Cristo Ltda.

Rua Águas Virtuosas, 1014- São Paulo (SP) - Tel (0**11) 3951-5574.

Ó 2002 – Todos os direitos desta edição reservados

Site para contato:  http://www.tfp.org.br/

Ao leitor

As agitações e o quebra-quebra promovidos por movimentos de esquerda em Seattle (EUA, 1999),  Göteborg (Suécia, 2001), e mais recentemente em Gênova (2001), por ocasião da reunião dos Chefes de Estado do G-8, chamou a atenção da opinião mundial para um fenômeno que vinha despontando nos últimos três anos. Trata-se da contestação – por vezes violenta – contra a globalização e a atual ordem econômico-social etiquetada de neoliberal, levada a cabo por grupos aparentemente sem nexo entre si. Porém, bem observado o fenômeno, constata-se que essa luta tem servido de pretexto para a consolidação e entrelaçamento de tais grupos, que vão assim constituindo nova e perigosa rede internacional de esquerda, de cunho claramente anarquista.

Assim, as manifestações de rua nas citadas cidades, bem como a realização do I Fórum Social Mundial (fevereiro de 2001) e o Fórum Mundial de Educação (setembro de 2001) preparam e delineiam os contornos de um novo bloco anarco-comunista mundial, ora em gestação.

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O presente estudo denuncia esse imenso esforço de âmbito universal para a criação de uma nova Internacional comunista, desde já denominada nos meios da esquerda radical de Internacional Rebelde.

É o próprio comunismo que ressurge, porém metamorfoseado, conforme previra o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. E desta vez levando claramente como companheira de viagem a “esquerda católica”. O combate à globalização é a ocasião – quase diríamos o pretexto – para que essas forças remanescentes se recuperem do trauma sofrido com a queda do império soviético e se reagrupem.

Tal ocasião é bem escolhida, dado que um certo desagrado vai aumentando no mundo de hoje com relação à globalização, sobretudo com algumas de suas conseqüências práticas, como a perda de identidade das nações, o caótico movimento migratório etc.

Subjacente às críticas feitas à globalização, tais forças de esquerda se lançam de modo bastante violento contra o próprio capitalismo, visado até nos seus fundamentos legítimos, como a propriedade privada e a livre iniciativa. Assim, no dizer delas mesmas, o combate não é dirigido contra qualquer globalização, mas sim contra a globalização capitalista.

Os novos contestatários querem, também eles, uma globalização, mas de tipo anárquico-tribal, na qual, em última instância, sejam dissolvidas todas as nações e abolidas as autoridades, favorecendo assim o surgimento de pequenas comunidades autogestionárias, totalmente igualitárias.

A TFP rejeita o falso dilema, muito difundido pela mídia, de que seria preciso optar entre “global” ou “não global”. Entrar nesse debate, tomando posição de um lado ou de outro, sem as devidas ressalvas, já é acentuar esse falso dilema. Uma sociedade autenticamente de acordo com a natureza humana desenvolveu-se na Civilização Cristã, e esta pode e deve ser restaurada, conforme o ensinamento dos Papas.

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Um apanhado sucinto talvez ajude o leitor a manter  no espírito os pontos essenciais desenvolvidos neste trabalho.

Na Introdução encontram-se as bases do presente estudo e as distinções necessárias para bem compreendê-lo.

A matéria do Capítulo I versa sobre a gênese, preparação e realização do I Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre – de importância capital nessa aglutinação das esquerdas – bem como o perfil ideológico de seus mentores.

No Capítulo II fica demonstrado o papel-chave da “esquerda católica” na articulação que está dando origem à Internacional Rebelde;

O Capítulo III torna claro – no contexto da ação das esquerdas desde a queda do Muro de Berlim – que o comunismo renasce agora, metamorfoseado;

O Capítulo IV analisa o porquê de alguns grupos assumirem a violência, enquanto outros a rejeitam. E aponta para o fato de a direção dos fóruns, em particular o de Gênova,  tomar uma posição de ambigüidade benevolente em relação aos violentos, aceitando-os em seu seio;

No Capítulo V põe-se em realce o grau de engajamento dos católicos italianos na realização do  Fórum de Gênova e suas manifestações de rua; o desconcertante apoio que dois Cardeais e muitos membros do Clero italiano deram ao evento, bem como seu recuo parcial após a violência desencadeada;

No Capítulo VI são analisados os fundamentos doutrinários dos novos anarquistas e sua trajetória, partindo de Bakunin e terminando em Chomsky e Toni Negri, os principais ideólogos do neo-anarquismo e da Internacional Rebelde.

Por fim a Conclusão indica que a verdadeira opção para o mundo hodierno não se encontra nos anelos igualitários por uma sociedade autogestionária, que tende a desembocar no caos, mas  na sociedade orgânica, base fundamental da Civilização Cristã.

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Os trágicos acontecimentos de 11 de setembro criaram um impasse inesperado para os propulsores da Internacional Rebelde: objetivamente ou não, boa parte da opinião pública mundial começou a relacionar com o terrorismo os novos contestatários, dado o caráter violento de muitas de suas manifestações[1].

O certo é que a rede mundial de movimentos de esquerda radical, reunidos na Internacional Rebelde, pode representar para a Civilização Cristã um perigo bem maior, do ponto de vista religioso-político-social-econômico, do que os terroristas do Al Qaeda. Alertar a opinião pública para a dimensão deste perigo, indicar-lhe as causas e sugerir os meios para evitá-lo é o objetivo do presente ensaio.

Introdução

 

Lançamento de uma Internacional Rebelde, a pretexto de combater a globalização capitalista

Quando correntes ideológicas minoritárias conseguem capitanear anseios mais ou menos populares e dirigi-los para alvos predeterminados, como sejam as estruturas da sociedade, estas podem ser abaladas até seus fundamentos.

Presenciamos hoje em dia o surgimento de uma nova esquerda, que se esforça em galvanizar um crescente descontentamento popular com o processo de globalização. Tal esquerda visa constituir uma Internacional Rebelde, à semelhança da ultrapassada Internacional Comunista.

Plinio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, insigne pensador e líder católico, jamais acreditou que o comunismo – fruto de uma secular crise moral e religiosa – tivesse morrido. Assim como certos rios que se afundam na terra, correm subterrâneos e, mais adiante, voltam à superfície, o comunismo deveria necessariamente reaparecer. Não idêntico ao que era, mas metamorfoseado, requintado até[2].

Em 1992 foi publicada a 4ª edição em português de sua obra magna, Revolução e Contra-Revolução. O fundador da TFP brasileira aproveitou o ensejo para salientar um aspecto da realidade internacional que lhe permitiu conjeturar uma neo-revolução renascendo das cinzas do fracassado comunismo.

Assim, com 10 anos de antecedência, Plinio Corrêa de Oliveira descreve precisamente o eixo em torno do qual – a pretexto de “globalização” –  se desenvolve a atual confrontação ideológica entre o capitalismo vigente e o pós-capitalismo emergente. Ao prever as conseqüências do desmantelamento da URSS, afirma ele:

“Por exemplo, a crescente oposição entre países consumidores e países pobres. Ou, em outros termos, entre nações ricas industrializadas e outras que são meras produtoras de matérias-primas.

“Nasceria daí um entrechoque de proporções mundiais entre ideologias diversas, agrupadas, de um lado em torno do enriquecimento indefinido, e de outro do subconsumo miserabilista. À vista desse eventual entrechoque, é impossível não recordar a luta de classes preconizada por Marx. E daí surge naturalmente uma pergunta: será essa luta uma projeção, em termos mundiais, de um embate análogo ao que Marx concebeu sobretudo como um fenômeno sócio-econômico dentro das nações, conflito este no qual participaria cada uma destas com características próprias?

“Nessa hipótese, a luta entre o Primeiro Mundo e o Terceiro passará a servir de camuflagem mediante a qual o marxismo, envergonhado de seu catastrófico fracasso sócio-econômico e metamorfoseado, trataria de obter, com renovadas possibilidades de êxito, a vitória final?”

O I Fórum Social Mundial de Porto Alegre:

ressurge a luta de classes em novas bases

Em janeiro de 2001, teve lugar o I Fórum Social Mundial de Porto Alegre (FSM), convocado como desafio alternativo ao conhecido Fórum Econômico Mundial de Davos. O que levou Ignacio Ramonet[3], a intitular sua coluna editorial em “Le Monde Diplomatique” “Davos? Não, Porto Alegre...”

A luta de classes Norte/Sul e a reconstrução da Utopia socialista tinham, de fato, recomeçado sob um falso dilema: pró ou contra a globalização! O slogan adotado pelo FSM diz muito: “Um outro mundo é possível”.

Era, em fase adiantada de constituição, a Internacional Rebelde. A expressão foi usada pela primeira vez pelo próprio Ramonet, e tem sido repetida para designar o conjunto de associações e pessoas engajadas na luta contra a globalização.

O presente  estudo põe em realce o papel do evento de Porto Alegre nesse empreendimento, bem como o de seus principais promotores: a associação francesa Attac, o mensário parisiense Le Monde Diplomatiquee a esquerda católica brasileira.

Para a Internacional Rebelde, o fracasso do “socialismo de Estado” de tipo marxista não invalidaria outras formas possíveis de socialismo radical: vida comunal, democracia direta, autogestão dos trabalhadores, reabilitando até as teorias anarquistas de Mikhail Bakunin.

Ademais, esse socialismo anárquico assumiria as lutas do novo “proletariado”, saído das barricadas da Revolução da Sorbonne, de Maio de 1968: as ofensivas antipatriarcais do feminismo; a defesa de pseudo-direitos das “minorias sexuais”; a promoção de estilos de vida “alternativos”; a liberalização da droga; enfim as “causas” de todos os ditos “excluídos”.

A Internacional Rebelde, ameaça real  – Papel da  “esquerda católica”

Para ser bem analisada, a Internacional Rebelde deve ser vista sob dois ângulos distintos e complementares.

De um lado, enquanto reedita os erros do comunismo clássico, ela constitui uma força essencialmente anti-propriedade privada e anti-livre iniciativa, portanto anticapitalista, procurando exacerbar o confronto Norte-Sul.[4] De outro lado, traz elementos novos, carreados por movimentos ecológicos, indigenistas e outros, que já falam diretamente de anarquia, caos e misticismo revolucionário. Este último aspecto – o dos elementos novos – embora menos definido nos documentos da nova Internacional, é entretanto o por onde ela aparece mais dinâmica e mais capaz de arrastar as suas bases.

Ao longo do presente trabalho, serão abordados indistintamente um ou outro desses aspectos do tema, conforme as conveniências de apresentação.

No espectro da esquerda atual, esse neocomunismo, mesmo em ascensão, é por ora minoritário, por vezes até marginal. E não tem ainda força política para impor sua agenda aos partidos da esquerda clássica, como o PT brasileiro, o PS francês, o SPD alemão, o PSOE espanhol etc., dentro dos quais os novos anarquistas exercem importante influência, mas não decisiva.

Porém, surfando por cima da onda “antiglobalização”, e propondo certas medidas “moderadas” para um “controle democrático” do processo de mundialização, poderá o neocomunismo alcançar força suficiente para integrar e até liderar uma Frente Ampla que, ela sim, flexionará a marcha dos acontecimentos no sentido anarquista. E poderá até – em meio a eventuais conflitos sociais graves – vir a assumir o governo em algumas áreas. É pelo menos o que deseja para certos países da América Latina um experimentado radical da Teologia da Libertação, o Pe. Joseph Comblin, ao qual nos referiremos no decorrer da exposição.

O respaldo religioso é vital para o neocomunismo tentar sua aventura, sobretudo hoje em dia, em que um ressurgimento religioso na juventude surpreende os observadores, após mais de um século de inclemente propaganda atéia.

As forças de esquerda encontram-se largamente infiltradas nos meios religiosos, inclusive, dói dizê-lo, na Santa Igreja Católica, baluarte natural contra o socialo-comunismo por sua missão, sua doutrina, sua tradição e sua estrutura divinamente inspiradas.

No interior da Igreja, os corifeus da Teologia da Libertação e congêneres levaram a cabo um trabalho de demolição tão meticuloso e geral de tudo quanto pudesse significar resistências a uma investida marxista, que, sob esse aspecto, pouca coisa resta meritoriamente de pé. A tal ponto que, já em 1976, Plinio Corrêa de Oliveira pôde escrever: “O progressismo, instalado por quase toda parte, vai convertendo em lenha facilmente incendiável pelo comunismo a floresta outrora verdejante da Igreja Católica”.[5]

  Isso nos faz pensar nas graves palavras de Paulo VI sobre a autodemolição da Igreja e a penetração da fumaça de Satanás no Templo de Deus. Ou então na Alocução de João Paulo II, na qual ele denuncia a grave situação em que se encontram os cristãos de hoje: “Submersos no ‘relativismo’ intelectual e moral e por conseguinte no permissivismo, os cristãos são tentados pelo ateísmo, por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos e sem moral objetiva”.[6]

Cúpulas políticas e econômicas do mundo atual começam a perder a guerra psicológica

Muito de passagem, queremos assinalar ainda um ponto que, embora esteja fora de nosso tema, é de capital importância para quem quiser, de futuro, empreender um estudo abrangente dos rumos seguidos pela civilização hodierna.

Nosso tema é a Internacional Rebelde, sua formação, suas ações. Mas para ter o panorama completo, seria preciso analisar também quais têm sido as táticas dos dirigentes do mundo atual – são eles o alvo mais próximo das investidas desfechadas pela nova Internacional – para contrapor-se aos ataques que recebem.

Em outros termos, em Seattle, em Porto Alegre, em Gênova, a reação das cúpulas dirigentes da política e da economia mundiais esteve à altura da contestação? Houve, sequer, uma reação? Não se trata, evidentemente, de uma reação armada, mas sim psicológica e propagandística. Tanto mais que uma reação policial mal conduzida pode pesar como fator adverso no tabuleiro muito mais importante da guerra psicológica, no qual a mídia exerce papel fundamental. Assim, pergunta-se: no jogo da guerra psicológica revolucionária, no qual a Internacional Rebelde vai atuando largamente, seus opositores souberam enfrentá-la à altura? Desejaram pelo menos enfrentá-la?

Sem querer dar uma resposta cabal a essas indagações, todos os indícios parecem apontar para uma espécie de inércia das mais altas cúpulas, em alguns casos até de franca colaboração com o adversário, que faz temer uma derrota. Esta pode não ser iminente, pois a força e a pujança das atuais instituições ainda são muito ponderáveis. Mas, se depender da reação das principais cúpulas político-econômicas do mundo capitalista atual, não se vê como possa ser evitada – a longo, e talvez a médio prazo – a vitória dos contestatários.

O fenômeno não é novo. O avanço da Revolução protestante no século XVI só foi possível porque muitos dos altos dirigentes da Igreja e da Cristandade o subestimaram, considerando-o “uma querela de frades”. A fraqueza de Luiz XVI diante das hordas revolucionárias de 1789 levou-o a capitular e não a enfrentá-las. Foi ainda a tática do “ceder para não perder” – em vez do lutar para não perder – que contribuiu poderosamente para a queda do czarismo na Rússia e a tomada do Poder pelos francamente minoritários seguidores de Lênin. A ascensão de Hitler na Alemanha encontrou campo propício na inércia da nobreza e até na conivência de políticos católicos, como o chanceler Franz von Papen.

Algo de semelhante poderá dar-se na presente quadra histórica? Fica aqui o tema levantado, a fim de que o leitor possa tê-lo presente ao longo das páginas que seguem, embora  o escopo deste trabalho e suas dimensões não permitam aprofundá-lo.

Uma denúncia inspirada no amor à Civilização Cristã

Em 1864 foi fundada a Primeira Internacional por um punhado de intelectuais e sindicalistas comunistas. Cinqüenta anos mais tarde, cavalgando correntes moderadas e aproveitando as turbulências de uma grande crise, os comunistas apossaram-se do Poder na Rússia e instauraram o maior e mais sangrento Império que a humanidade tenha conhecido.

A nova Internacional Rebelde talvez sonhe em repetir esse golpe de mão. Ainda que seja depois de amanhã. O certo é que, desde ontem, seus componentes já se mobilizam, se reúnem, se estruturam e modificam profundamente os termos do debate.

É preciso que a opinião pública esteja alerta para os riscos que isto representa. Eis a razão deste ensaio.

Posta a atual ofensiva contra a propriedade privada e a livre iniciativa, desfechada em nome da “antiglobalização”, assim como dos esforços da neo-revolução contestatária a favor de um socialismo de tipo anárquico-libertário, os autores deste trabalho crêem ser seu dever sair a público para lançar a presente denúncia. Ao fazê-lo, eles não optam nullo modo pela “globalização”, a qual está erodindo gradualmente a soberania das nações. E a soberania representa para cada povo o que a propriedade privada representa para os particulares: uma condição para a própria liberdade e para o reto desenvolvimento de todas as suas potencialidades.

Desse modo, enquanto o socialismo-anárquico dos antiglobalizantes – a Revolução de amanhã – é intrinsecamente mau e antinatural, ao atacar elementos fundamentais de ordem natural, como a propriedade privada, a livre iniciativa e o papel subsidiário do Estado, o processo de globalização, ainda que fundado no capitalismo — considerado pela Igreja bom em si mesmo e condenável apenas em seus abusos — representa a Revolução de hoje, enquanto uma deformação e um excesso malsão do próprio capitalismo.

Seja como for, o católico lúcido e fervoroso deve ter sempre em mente o ideal de Cristandade. Tender para ele no fundo de sua alma, e desejar ardentemente que a Providência Divina encaminhe as coisas de modo tal que a Civilização Cristã possa vir a ser restaurada na sua plenitude em dias melhores. Como diz São Pio X: “A civilização não mais está para ser inventada, nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe; é a Civilização Cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos” (Carta Apostólica sobre “Le Sillon”, de 25-8-1910).

De nossa parte, recusamos formalmente a alternativa “global” ou “não global” como escolha necessária. A Santa Igreja Católica, ao ser fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, trouxe em si também as sementes de uma sociedade temporal cristã. Esta chegou a nascer, desenvolver-se e dar frutos abundantes no passado (cfr. Leão XIII, Encíclica Immortale Dei). Por que não poderá produzi-los também no futuro? A natureza social do homem como Deus o fez – e não como os utópicos de todos os tempos o querem – regada pela graça divina, tem possibilidades insuspeitadas de florescer em todos os tempos e lugares. Que tipo de sociedade poderá desdobrar-se organicamente, a partir do  momento em que ocorra o espetacular triunfo do Imaculado Coração de Maria, previsto em Fátima por Nossa Senhora? Sobre isto teceremos algumas considerações ao concluirmos o presente trabalho.

Capítulo I

Porto Alegre, janeiro de  2001: embrião da V Internacional Rebelde

“Contestatários do mundo inteiro, uni-vos!”

A V Internacional – a Internacional Rebelde – teve sua gestação ligada a diversos grupos e pessoas de esquerda, entre os quais se projetam Ignacio Ramonet, diretor do mensário Le Monde Diplomatique, uma espécie de mentor intelectual do novo movimento, e sua equipe.

Seguindo uma estratégia de expansão e de alianças com outros órgãos de imprensa estrangeiros – que divulgam como suplemento uma versão em língua local de Le Monde Diplomatique–, Ignacio Ramonet transformou o mensário francês numa potente máquina de difusão de idéias: 20 edições em 10 línguas, totalizando 1.200.000 exemplares.

Ademais, seus parceiros representam, também eles, um tipo de jornalismo engajado nas lutas anticapitalistas. Por exemplo, o jornal comunista “Il Manifesto” difunde a versão italiana do mensário francês. Em Londres é o “The Guardian Weekly” que edita sua versão inglesa como suplemento. E no Brasil, a colaboração com os editores comerciais da versão portuguesa prevê o direito de transcrição gratuita para uma rede de pequenos órgãos ligados aos movimentos mais radicais da esquerda, como o MST.

Mas para canalizar o descontentamento existente contra a globalização da economia mundial era preciso criar uma estrutura de conscientização e de mobilização no Hemisfério Norte e ligá-la depois aos movimentos do Sul, como os zapatistas, o MST, as FARC etc.

A oportunidade para tal apareceu com as turbulências provocadas pela crise asiática de 1997. Num editorial de Le Monde Diplomatique, de dezembro daquele ano, sob o título Desarmar os mercados, Ramonet criticava o FMI e a OMC e sugeria a criação de um imposto sobre transações financeiras internacionais (a assim chamada Taxa Tobin). E se perguntava: “Por que não criar a ONG Ação pela Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos (Attac)?” – a qual “poderia agir como um formidável grupo de pressão cívica junto aos governos”.

Attac: uma universidade popular voltada para a ação revolucionária?

Em junho de 1998, constituía-se em Paris – com o nome ligeiramente alterado, mas conservando a sigla Attac – a “Associação para a Taxação das Transações e para a Ajuda aos Cidadãos”. Como membros fundadores figuravam conhecidos sindicatos, movimentos alternativos e periódicos da esquerda radical francesa. A unidade desse conjunto era assegurada pelo engajamento total de Le Monde Diplomatique[7].

A Attac atribuiu-se a missão de produzir informação (“do livro até o panfleto”) e de promover encontros locais, nacionais e internacionais para tornar-se conhecida do grande público. Ela se serve da Internet como principal meio de transmissão de documentos de estudo e de ligação entre a associação e seus aderentes, com vistas à ação.

O progresso da Attac foi rápido. A primeira vitória do movimento deu-se em dezembro de 1998, quando o governo francês abandonou as negociações do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), depois de receber uma petição da Attac assinada por 100 mil franceses.

Fortalecida com essa vitória, a Attac organizou no mesmo mês o primeiro encontro internacional para criar uma plataforma mundial, reunindo em Paris cinqüenta representantes de 11 países.

Seis meses mais tarde, realizou-se um Encontro Internacional da Attac, que contou com a participação de 113 delegações, vindas de 70 países. Nesse encontro os delegados decidiram participar da mobilização contra a Rodada do Milênio da OMC, em Seattle, e promover uma “petição mundial” em favor da Taxa Tobin.

A rede em ação: tentativa de virada histórica em Seattle

Em Seattle, cerca de 750 ONGs inscreveram-se para participar de uma assim chamada Rodada Alternativa, em oposição à Rodada do Milênio, exigindo a supressão da Organização Mundial do Comércio. Ou, pelo menos, que se incluíssem nas negociações dispositivos de proteção das vantagens sociais alcançadas pelos trabalhadores, assim como cláusulas protegendo o meio ambiente.

Então, uma manifestação organizada pelos poderosos sindicatos americanos e pelas ONGs teve uma amplitude e uma violência que de há muito não se observava nos Estados Unidos. A cerimônia de abertura da Rodada do Milênio teve de ser cancelada, porque os manifestantes impediram que grande parte dos delegados chegasse ao local. Ademais, por não estarem bem preparadas, as negociações fracassaram.

Para o arquipélago contestatário, Seattle foi considerado uma imensa vitória e uma virada histórica, tanto pelo número de organizações que participaram da iniciativa, quanto por sua diversidade. Entretanto isso não parece ter representado um avanço na conquista da opinião pública.

Outra vitória alardeada a propósito de Seattle foi o sucesso das operações de “desobediência civil” que desarmaram a polícia e impressionaram os delegados. Mas talvez o maior triunfo tenha sido o “mediático”, dando visibilidade artificial a grupos até então inteiramente desconhecidos, que passaram a ser chamados de “o povo de Seattle”.

A articulação contestatária Norte/Sul

A mobilização de Seattle serviu ainda para fazer convergir as reivindicações dos revolucionários do Hemisfério Norte com os do Hemisfério Sul. De tal sorte que o II Encontro Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo – que teve lugar em Belém do Pará, em dezembro de 1999 – já incluía em sua Declaração final, além das habituais insistências na Reforma Agrária, autonomia indígena etc., temas como direitos dos inválidos e exigências de homossexuais e feministas.

Também a reunião da ONU, realizada em fins de junho de 2000 em Genebra, foi aproveitada para organizar mais um encontro alternativo. A grande novidade dessa jornada foi o anúncio do nascimento do Fórum Social Mundial (FSM), cuja primeira reunião deveria ser realizada em Porto Alegre, simultaneamente ao Fórum Econômico Mundial, de Davos. Formou-se então um comitê internacional de preparação do Fórum.

Na realidade, o FSM já vinha sendo arquitetado nos bastidores pelos dirigentes da Attac França e por representantes da esquerda católica brasileira. Eis como Bernard Cassen, presidente da Attac e um dos principais articuladores do projeto, relata a origem e o desenvolvimento da idéia:

“Em fevereiro de 2000, durante uma discussão com Chico Whitaker[8] e Oded Grajew[9], em Paris, surgiu a idéia de organizar o Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Lembro-me de ter-me precipitado em seguida na sala do diretor de redação do jornal, Ignacio Ramonet, e de lhe haver dito: ‘Ignacio, nós vamos montar uma operação histórica: vamos afundar Davos!’ .... nós decidimos, no ato, que o Diplô colocaria todo o seu peso na balança para concretizar a idéia. .…

“Uma ratificação internacional do projeto era indispensável. A ocasião seria dada pelo Fórum alternativo à cúpula social da Organização das Nações Unidas (ONU), a ser realizada em Genebra, na Suíça, no fim do mês de junho e em cuja preparação a Attac francesa estava participando ativamente. Diante de uma platéia de cerca de 200 representantes de movimentos sociais dos quatro continentes, Miguel Rossetto, vice-governador do Estado do Rio Grande do Sul, expôs as grandes linhas do que seria o Fórum Social Mundial e convidou os presentes a se mobilizarem no quadro de um comitê internacional de apoio para garantir seu êxito. O FSM estava, a partir desse momento, na órbita internacional”.[10]

Desde a sessão inaugural, tom «libertário»

Na sessão inaugural do Fórum Social Mundial, a atriz Celina Alcântara, com a parte superior do corpo completamente desnuda, declamou um texto do sociólogo marxista uruguaio Eduardo Galeano. Nele se descreve um mundo futuro no qual triunfarão o igualitarismo – “não haverá meninos ricos”, “ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão” etc. –  e o permissivismo moral aliado à blasfêmia – “a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo”. [11]

Os participantes representavam um vasto espectro do horizonte esquerdista. Desde um terrorista colombiano, que se apresentou como “Comandante Cifuentes”, passando pelo velho ex-Presidente da Argélia, Ben Bella, até representantes do movimento PROUT (Teoria da Utilização Progressiva) da Índia, que promove uma fusão entre o socialismo e a tantra yoga, e que goza da simpatia de Genésio Darci (o ex-frei Boff); desde Ricardo Alarcón, o terceiro homem do regime castrista, passando por Lula e Frei Betto até José Bové, o agitador das Ligas Camponesas da França[12].

Do megaevento participaram perto de 20 mil pessoas, de 117 países, incluindo 2 mil jovens e 700 índios que acampavam em parques da cidade. Para completar, havia 1870 jornalistas.

As mesas com painelistas (expositores) reuniam-se pela manhã; as oficinas (definidas como reuniões de debates, relatos de experiências e ocasião para articulações) de iniciativa dos delegados, à tarde; e na sessão vespertina eram apresentados os “testemunhos”[13].

Ainda no contexto do Fórum, dois eventos simultâneos foram inaugurados, dirigidos por agentes de esquerda: o 1º Fórum Parlamentar Mundial  com mais de 400 parlamentares de cerca de 30 países  e o Fórum de Autoridades Locais, ao qual compareceram 150 representantes de prefeituras da América Latina, Europa e África.

Incompreensível “déficit democrático” dos dirigentes

“A verdadeira riqueza do Fórum e sua força inovadora brotaram das oficinas propostas pelos participantes”, festeja Cândido Grzybowski em seu balanço[14].

A prioridade foi dada ao caráter “libertário” e ao engajamento do público. Por isso, tanto parlamentares quanto políticos não tiveram “o direito de apresentar nem gerar projetos, mas unicamente de acompanhar as propostas impulsionadas pelas comunidades, que são a emanação direta da base e refletem as realidades do terreno”[15], comenta, entusiasmada, Marina Galimberti, animadora das Pénélopes, entidade francesa integrante da importante rede Womenaction2000, organizadora da Marcha Mundial das Mulheres.

Dir-se-ia então que o FSM foi um modelo de democracia direta e participativa, à imagem do outro mundo possível em construção...

Entretanto, por detrás dessa aparência, certos relatos mostram que o ambicionado “novo mundo” não começa muito diferente da democracia popular soviética, governada pela Nomenklatura. Ou seja, a proclamada “liberdade” é para o palco; nos bastidores é que as coisas se decidem. A ativista canadense Naomi Klein fustigou nestes termos “o desanimador déficit de democracia do próprio Fórum Social Mundial”:

A estrutura organizacional do Fórum mostrou-se de tal modo opaca que era praticamente impossível descobrir como se tomavam as decisões e quais seriam os meios para questioná-las. Não havia plenárias abertas nem a chance de  votar uma estrutura para futuros encontros. Na ausência de um procedimento transparente, uma ONG feroz comentava que, por detrás dos bastidores, estariam acontecendo verdadeiras batalhas sobre as ‘estrelas’ que teriam mais tempo de exposição na mídia, quem teria acesso à imprensa e quais seriam os ‘eleitos’ como sendo os verdadeiros líderes daquele movimento .… A democracia dentro do próprio movimento precisa se transformar na sua mais alta prioridade[16].

Não se apresentou alternativa ao capitalismo

Outra carência do FSM: na hora de colocar no papel os valores alternativos, a diversidade de propostas era tal que já no terceiro dia foi preciso renunciar à possibilidade de publicar uma declaração final, como previsto. Para Naomi Klein, “no final, o Fórum não falava em uníssono”.

Essa diversidade de propostas chegou a ser defendida por alguns, como Átila Roque, que – relata Klein – declarou: “honestamente, não tenho saudades do tempo em que todos nós estávamos no Partido Comunista”[17].

Exceção foram os apelos em prol de uma democracia direta, de tipo autogestionário, como modelo para a sociedade e para o próprio movimento contestatário: “Em Porto Alegre”, prossegue Naomi Klein, “a resposta mais convincente à falência internacional da democracia representativa pareceu ser esta forma mais radical de democracia: a democracia participativa. .... O que parecia emergir de modo orgânico do FSM: uma visão de rede internacional, cada vez mais coesa, de iniciativas locais, cada uma delas construída através da democracia direta[18].

Porto Alegre significou o reforço da dinâmica contestatária em curso, ainda à procura de um novo paradigma doutrinário.

Essa indefinição de objetivos positivos – os negativos estão muito claros, a demolição da atual ordem político-social-econômica – não deve surpreender. A Revolução igualitária e anticristã que vem se processando no Ocidente desde o século XV[19] – e da qual a Internacional Rebelde procura ser a ponta de lança em nossos dias – não tem em vista construir nada, a não ser de modo acidental. Ela é essencialmente destruidora do edifício da Civilização Cristã e nos faz pensar num caos programado. Tal edifício chega lamentavelmente ao século XXI em ruínas e quase irreconhecível, mas ostentando ainda em seus destroços uma força de resistência que surpreende. E que parece prenunciar dias melhores que lhe estão reservados pela Providência Divina.

Assim, o próprio capitalismo atual é odiado, não pelo que ele possa ter de realmente censurável em alguns de seus aspectos, mas pelo que representa de defesa da propriedade privada, da livre iniciativa, da ação subsidiária do Estado, estes sim valores autenticamente cristãos, como ensina a doutrina social da Igreja.

União dos contestatários numa Internacional para a «guerra social planetária»

Em artigo para Le Monde Diplomatique”, Bernard Cassen afirma: “o que aconteceu na capital gaúcha constitui uma verdadeira virada” que confirma “a perspectiva de ver constituir-se [em Porto Alegre] o embrião de uma verdadeira Internacional rebelde[20].

Segundo o boletim eletrônico da Attac, citando Marc Delepouve, essa “Internacional rebelde” compõe-se de cinco grandes ramificações:

“– Poderosos sindicatos, como a CUT do Brasil, a COSATU da África do Sul ou a KCTU da Coréia do Sul; sem contar o engajamento crescente da central sindical dos Estados Unidos (a AFL-CIO);

“– A internacional camponesa, Via Campesina, que agrupa entre outros o Movimento dos Sem-Terra do Brasil; o poderoso sindicato dos agricultores da Índia, o KRSS; e a Confederação Camponesa da França;

“– Inúmeras associações, entre as quais a rede internacional de Attac;

“– Uma multidão de organizações sindicais ou políticas;

“– Redes de políticos com mandato eleitoral”.

Por sua vez, Ramonet afirma que os ativistas sociais “deram impulso ao que pouco a pouco acabou sendo uma nova guerra social planetária”, na qual “apesar da heterogeneidade das reivindicações, uma convergência efetiva se produz entre o campesinato, sindicatos operários, grupos ecologistas, novos movimentos de ação cidadã como Attac, organizações feministas, grupos de defesa dos direitos dos indígenas, aos que se soma uma nova geração de jovens militantes que aportam um entusiasmo novo”.

“Nunca havia se produzido uma convergência de tal envergadura. .... Face ao rolo compressor da globalização, unem-se movimentos e organizações ligados a classes diferentes e a setores muito díspares, de trajetórias diferentes e posições ideológicas contrastadas”.

E resolve profetizar : “Ainda não existe uma Internacional de protesto contra a globalização, mas já se escuta em todo o planeta este grito forte: Contestatários de todo o mundo, uni-vos![21].

Capítulo II

A “esquerda católica”: companheira de viagem da neo-revolução anárquico-marxista

Já nos referimos, de passagem embora, ao papel fundamental da  esquerda católica no processo de formação e nas atividades da Internacional Rebelde.

Não se trata apenas de uma contribuição revolucionária a mais, como a de uma ONG. Mas, dado o passado entranhadamente cristão da Europa e da América, como também de parcelas ponderáveis dos outros continentes, nada indica que a Revolução anárquico-socialista de nossos dias pudesse vislumbrar verdadeiras possibilidades de êxito se não tivesse conseguido infiltrar-se a fundo nos meios católicos. Tanto mais que o edifício a ser demolido é, em ultima análise, o que ainda resta de pé da Civilização Cristã de outrora, após séculos de investida revolucionária.

Sob esse ponto de vista, interessa vivamente acompanhar a movimentação dos chamados “teólogos da libertação” que, mesmo após serem censurados pela Santa Sé, continuam a atuar, embora com menos evidência. 

Um deles, o Pe. Joseph Comblin, publicou recentemente um livro sob o título América Latina 2001. Análisis de coyuntura. Nessa obra, ele aborda o difícil obstáculo que constitui para as esquerdas, o fato de o povo continuar em boa medida infenso à propaganda revolucionária. Para esse sacerdote, a saída seria esperar o advento de novas lideranças, bem como o surgimento de perturbações sociais que possam servir de ocasião para um golpe. Mas o maior interesse do texto não está tanto na solução que ele propõe, quanto na constatação de que a esquerda revolucionária é impopular e que busca desesperadamente um meio de contornar essa situação:

Continuamos em noite escura, afirma o ex-professor do ex-Instituto Teológico de Recife, fundado por Dom Helder Câmara, o Arcebispo Vermelho. “Entretanto, estão aparecendo luzes – somente algumas luzes – que poderiam anunciar novos tempos .… estão aparecendo sobretudo no primeiro mundo. O terceiro mundo – até agora – está tão desarticulado que não participa muito neste movimento. .… Há sinais de um despertar, mesmo que a máquina de poder seja ainda tão forte que consegue impor-se e manter a passividade das grandes massas. ....

“O que pode acontecer então nos anos vindouros? Haverá explosões sociais? .... Os líderes das esquerdas tradicionais já estão muito desgastados e sua estabilidade muito diminuída. Vai ser preciso aparecer novas lideranças.

Os cristãos devem participar nos movimentos paralelos ilegais ou semi-ilegais? .... Esta pergunta fora levantada há 30 anos, quando apareceram os movimentos guerrilheiros violentos e então houve várias respostas, porém a imensa maioria dos católicos não se integrou. Agora a questão é diferente, porque .… são movimentos mais complexos .… que não se propõem explicitamente a violência, ainda que em determinados momentos estejam de fato implicados em situações violentas.

“Qual deve ser a participação dos cristãos em tais movimentos? Não se pode dar normas gerais, porque cada caso será particular, e sempre existe este desafio para os católicos. .… Então nessas circunstâncias que se aproximam de nós, não devemos nem podemos criar ou elaborar todo um programa de transformação social – não temos a força para isso –, mas teremos que nos definir e escolher um rumo, quando aparecerem todos os movimentos esperados, toda a perturbação que se espera, os novos líderes, os novos movimentos que vão aparecer” [22].

Como se vê, o Pe. Comblin “nada aprendeu, nada esqueceu” das lições do século XX e, no meio da noite escura das esquerdas, aferra-se a desacreditadas táticas leninistas e as deixa como testamento aos que ainda sonham com o Grande Dia.

Porém, outros “teólogos da libertação”, ante a mesma constatação de fracasso do marxismo, resolveram aproveitar a onda de contestação “não global”. Saíram de suas tocas, metamorfosearam seus rostos e apresentam novas denominações adaptadas às novas lutas: teologia indígena, teologia feminista, teologia negra, teologia do corpo, eco-teologia [23]

Da caridade ao “terceiro-mundismo”: baldeação ideológica inadvertida

As antigas agências católicas de caridade – hoje mudadas em centros de “ajuda humanitária” ou de “solidariedade” – têm sensibilizado nas últimas décadas os católicos da Europa e dos Estados Unidos para as necessidades do Terceiro Mundo.

No começo, tratava-se de uma ajuda “missionária”, destinada primordialmente à evangelização de populações primitivas. Depois, essa ajuda passou a ser solicitada para que as “igrejas locais” pudessem ajudar materialmente o povo das favelas. Numa terceira fase, a ajuda era pedida para “projetos de desenvolvimento” propulsionados por instituições católicas. E por último – ainda que continuando a ser solicitada com uma finalidade vagamente religiosa – a ajuda passou em vários casos a ser encaminhada para a chamada “luta da libertação”: financiamento de greves, de movimentos revolucionários, até da subversão armada de inspiração marxista, como no caso dos “movimentos de libertação” da África Austral.

Para obter contribuições generosas, as respectivas agências não hesitaram em recorrer a artifícios de propaganda que davam uma visão exagerada da miséria na América Latina e no Terceiro Mundo em geral. Quanto mais famélico o pobrezinho da foto, tanto mais dinheiro entrava no caixa...

Essa propaganda incutia nos católicos do Hemisfério Norte um certo complexo de culpa pela situação do Sul, baseado na idéia de que o Terceiro Mundo era vítima do colonialismo dos países ricos. E que a riqueza do Norte era sugada do Sul[24].

O clima psicológico estava montado para que bom número de católicos, vitimados por essa baldeação ideológica inadvertida[25], pudesse engajar-se em campanhas anti-“mundialização”.

Desenvolvimento da campanha Jubileu 2000

Foi notadamente esse o papel da campanha Jubileu 2000, lançada na Inglaterra, em 1994.[26] Dizendo-se inspirada no livro do Levítico, que prescrevia ao então Povo Eleito o cancelamento das dívidas nos anos jubilares, tal Campanha transformou-se, em 1997, numa coalizão de mais de 60 organizações inglesas, incluindo igrejas, sindicatos, associações humanitárias e grupos comunitários.

No mesmo ano, nasceu Jubilee 2000/USA a partir de um Grupo de Trabalho Religioso para estudar o Banco Mundial e o FMI, composto de representantes de perto de 40 organizações católicas e protestantes.

Em abril de 1998, era inaugurada a campanha africana no Ghana, com a participação de delegados de 20 países do continente. E em janeiro de 1999, foi lançada em Honduras a versão Latino-Americana e Caribenha da mesma campanha, com o concurso de delegações de 16 países.

Em junho de 1999, com a participação da Campanha Jubileu, 50 mil manifestantes em Colônia e Stuttgart exigiam dos “sete grandes” o cancelamento da dívida dos países mais pobres. De fato, 100 bilhões de dólares foram cancelados pelo G7 e, antes do fim do ano, os EUA e a Inglaterra cancelavam 100% dessa dívida. Resta saber, quando aqueles países necessitarem de crédito novamente, se lhes será fácil obtê-lo...

O mais importante, entretanto, do ponto de vista da formação da Internacional Rebelde, não são esses cancelamentos parciais das dívidas. Que um indivíduo, ou uma nação, resolva perdoar uma dívida, pode até constituir, de si, um ato altamente meritório. Mas no caso concreto, à medida que a campanha se desenvolvia, uma convergência crescente ia-se produzindo entre agências de ajuda católicas e movimentos notoriamente esquerdistas ou até anticatólicos. E o que os tornava eufóricos, não era o benefício que o cancelamento da dívida trazia a este ou aquele país pobre, mas sim o fato de que haviam conseguido maior união e “arrancado” dos ricos essa concessão.

Em novembro de 1999 realizou-se uma Cúpula Sul-Sul, na África do Sul, reunindo “movimentos populares, religiosos e profissionais, bem como organizações políticas e outras coalizões de devedores provenientes de 35 países da África, Ásia, Pacífico, América Latina e o Caribe”. No manifesto final, declarava-se que o encontro se inspirava numa “ampla compreensão leiga e religiosa das tradições do ‘Jubileu’”, à procura das “causas estruturais (da dívida)”, e de “alternativas duráveis”. E anunciava a criação da Plataforma Jubileu Sul, destinada a reforçar alianças “solidamente ancoradas na luta histórica contra toda forma de opressão no quadro e na tradição antiimperialista”.[27]

Claro envolvimento da “esquerda católica” com os contestatários

Na França, uma primeira campanha de informação, secretariada pelo Comitê Católico contra a Fome e pelo Desenvolvimento (CCFD), incorporava outros organismos católicos como Secours Catholique, Délégation catholique pour la coopération (DCC) , Justiça e Paz e institutos missionários femininos. E incluía também a Liga do Ensino (notoriamente laicista) e Solidarité Laïque, uma contrafação atéia da Caritas. A Attac França deu ampla cobertura à campanha de informações[28].

Por ocasião da reunião do Clube de Paris essa campanha organizada pelo CCFD convocou uma manifestação pública, da qual participaram a CGT (sindicato comunista), France Libertés (a fundação de Danielle Mitterand), a Liga Africana pelos Direitos do Homem, a Liga pelo Ensino e o MRAP (ligado ao Partido Comunista).

Porém, de longe, o mais significativo foi a convergência católico-contestatária nas próprias arruaças.

Os jornalistas Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair contam que, no dia anterior às manifestações de Seattle, “um fórum discutiu a OMC e o sistema de guerra global, enquanto o Jubileu 2000 organizava uma Missa”. E comentam: “O Jubileu 2000 promoveu um dos eventos mais criativos em Seattle, uma tentativa de formar uma cadeia humana ao redor do centro de exposições, para evitar que os delegados da OMC assistissem a uma reunião noturna com executivos das corporações Microsoft e Boeing. Milhares de pessoas participaram desafiando o mau tempo imperante. Ali, o Jubileu 2000 e a campanha 50 Years is Enough combinaram planificar uma semana de protestos em Washington DC  contra as atividades dos representantes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional”[29]. Protestos estes que, como se sabe, degeneraram em incidentes.

Dita convergência continuou por ocasião dos posteriores encontros internacionais e cúpulas alternativas.

Frei Betto e o prêmio Nobel argentino Adolfo Pérez Esquivel uniram-se, em Outubro de 2000 em Nova Iorque, à marcha dos imigrantes ilegais e à Marcha mundial das mulheres[30]. O Centro Lebret e o CCFD participaram da Contra-Cúpula ASEM 3, que teve lugar em Seul (Coréia do Sul), no mesmo mês[31]. Em novembro, a revista “Témoignage chrétien”[32] destacou-se entre os organizadores do Encontro Internacional de La Villette, junto a organismos marxistas ou laicistas como Actuel Marx, Espaces-Marx, Liga do Ensino, Fondation Jean Jaurès, Attac, etc.[33].

Atuação decisiva dos católicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre

1) O papel do Cônego François Houtart

Na organização do FSM de Porto Alegre colaborou o Fórum Social das Alternativas e do Centro Tricontinental, dirigido pelo Cônego François Houtart, que dispõe de vastos contatos internacionais. Assim descreve o jornal Le Monde o personagem:

“François Houtart, crente por existencialismo, marxista por convicção, contestatário por necessidade, o sacerdote belga leva sua vida no modo de engajamento. .… Aos 76 anos, este cidadão do mundo .… colocou na cabeça a idéia de utilizar a web mundial para ‘fazer um inventário dos movimentos sociais de resistência ao capitalismo.’ .… Entre duas viagens a São Paulo ou a Dakar, é por Rede interposta que este septuagenário prepara o segundo Fórum Social Mundial, que reunirá em Porto Alegre todos aqueles que acreditam que ‘um outro mundo é possível’, e do qual ele se tornou um dos líderes”.

O jornal relata em seguida que, depois da ordenação, ele passou quatro anos vivendo com os “explorados” da América Latina e que o resultado de suas análises sociológicas repousa na biblioteca de seu escritório da Universidade de Louvain “entre diversas edições das Bíblia, de estátuas incas e uma estatueta de Fidel Castro”[34].

Em 1976, ele funda o Centro Tricontinental para dar apoio “a uma multidão de movimentos de libertação nacional, desde a Frente de Libertação Moçambicana até os sandinistas nicaragüenses, passando pela ANC de Nelson Mandela”.

Segundo “Le Monde”, por duas vezes o Vaticano quis expulsá-lo da Universidade, “mas o sacerdote está em paz com seu ‘marxismo’”, que “não ‘desemboca no ateísmo’” porque “sua fé não o abandonou jamais” (“se bem que o Padre não reze senão raramente a missa”, acrescenta o jornal)[35].

2) “Chico” Whitaker e Comissão Justiça e Paz da CNBB: ação decisiva

No capítulo anterior, foi relatado o papel de Francisco Whitaker, Presidente da Comissão Justiça e Paz da CNBB e vereador do PT por São Paulo, na reunião nos escritórios de Le Monde Diplomatiqueonde foi orquestrado um “Contra-Davos do Sul” a ser realizado em Porto Alegre.

Um mês depois desse encontro, segundo Bernard Cassen, “Chico [Whitaker] e Oded [Grajew] haviam trabalhado com sua tradicional eficiência e constituído um coletivo de oito entidades que aceitavam assumir a organização do FSM”. Num jantar em Porto Alegre, foi decidido que esse coletivo “tomasse unilateralmente a iniciativa” da convocação internacional. O que foi feito em Genebra.

Cumpre ressaltar que, nesses preparativos, “Chico” Whitaker agiu enquanto secretário da Comissão Justiça e Paz, que desde então fez parte oficialmente do Comitê Organizador.

No Fórum de 2002, Whitaker deverá dirigir uma oficina promovida pela mesma Comissão, visando propiciar um encontro pessoal entre membros de Comissões Justiça e Paz do Brasil e de outros países[36].

Quanto ao Fórum Social Mundial 2003, Whitaker e Cassen foram nomeados para estabelecer “critérios para a escolha de um local”, na Índia[37].

3) Apoio logístico da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre

Mais protuberante ainda revelou-se o apoio logístico e financeiro concedido ao FSM pela Universidade Católica de Porto Alegre. De fato, o coração do encontro foram as sessões matutinas, realizadas no imenso auditório do Centro de Eventos da PUC gaúcha, alugado com um desconto de 40%.

Nesse auditório é que se desenvolveu o show inaugural com a participação, como já dissemos, de uma atriz semi-nua proclamando que, “a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo”.

Foi também do campus universitário que partiu a Marcha da qual participaram grupos feministas precedidos de uma faixa com os dizeres “O aborto é possível”[38].

Pode uma universidade pontifícia – que deveria ser campeã da Moral e do Evangelho – correr o risco de acobertar novamente em 2002 a promoção da imoralidade e do massacre dos inocentes?

4) Participação ativa de representantes emblemáticos da Teologia da Libertação

Na inauguração do Fórum, foi lida uma carta de D. Pedro Casaldáliga, o autoproclamado “monsenhor martelo e foice” de São Félix do Araguaia[39]. E compareceu D. Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à CNBB, participando inclusive de oficinas.

Frei Betto discursou na primeira sessão do Eixo III, presidida pelo Cônego Houtart, desvendando um sentido novo de ecumenismo: “as sementes dessa cultura da solidariedade já se encontram nas grandes tradições religiosas, nos valores comunitários dos povos indígenas tribalizados, na experiência dos místicos e no testemunho de revolucionários que, como Jesus, Gandhi e Che Guevara, deram suas vidas para que outros tivessem vida”.

Dois ex-religiosos também estiveram ativos, mas não chegaram a falar: Genésio Darci (o ex-frei Leonardo Boff), hoje consagrado à eco-teologia, e o ex‑padre Olivério Medina, porta‑voz das Farc, proibido pela polícia de participar de atividades políticas no Brasil.

Diversas entidades católicas estiveram presentes, animando oficinas, articulando coalizões e promovendo ou assinando declarações e apelos contestatários[40].

*       *              *

Vistos esses antecedentes da participação católica no Fórum Social de Porto Alegre podemos concluir que tinha razão o comunista francês Michel Löwy ao afirmar, no painel do terceiro dia do Eixo IV:

“A renovação do internacionalismo não passa somente pelas forças sindicais e políticas mais radicais do movimento operário e socialista em todas as suas componentes (dos marxistas aos libertários)”. Porque, de fato, “os cristãos radicalizados são uma componente essencial, tanto dos movimentos sociais do Terceiro Mundo – muitas vezes inspirados, sobretudo na América Latina, pela Teologia da Libertação – quanto associações européias de solidariedade com as lutas dos países pobres .... Eles trazem uma contribuição importante na elaboração de uma nova cultura internacionalista”.[41]

Mil vezes hélas!, mas quão verdadeiro... Como ficou dito no início deste capítulo, a contribuição de católicos é capital para que a contestação anticatólica tente atingir seus fins. Por isso, as cúpulas do movimento progressista na Igreja esforçam-se extraordinariamente para mobilizar os fiéis em favor da contestação revolucionária. Mas estes parecem escapar-lhes das mãos...

Capítulo III

 Berlim 1989/Gênova 2001

“Morto” com a queda do Muro,  “ressuscita” agora o comunismo

Gênova, quarta-feira, 18 de julho de 2001

Os organizadores do Fórum Social de Gênova (FSG) – oposto à realização da Cúpula de Chefes de Estado do G8 – anunciam que se preparam para invadir a “zona vermelha” onde se desenvolverá o encontro e que tentarão repetir o feito de Seattle, onde dois anos antes haviam conseguido impedir a realização da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio.

Sexta-feira, 20 de julho

Por volta das 3h da tarde, a vanguarda do cortejo de 20 mil manifestantes aproxima-se da zona vermelha e os policiais lançam os primeiros gases lacrimogêneos. Por mais de uma hora, dão-se cargas e contra-cargas, os Tute Bianche e milhares de adeptos da “resistência passiva” hostilizam a maior parte das forças antimotins. Na retaguarda e nos flancos, as hordas anarquistas do Black Bloc – cinco mil agitadores, segundo o ministro italiano do Interior – começam a destruir tudo à sua passagem com fúria devastadora.

Gênova vira um campo de batalha. Por todos os lados há furgões e carros queimados, vitrinas quebradas, prédios em chamas, cabines telefônicas destruídas e latas de lixo reviradas.

Balanço da jornada de violência: 1 morto e 172 feridos, dos quais 40 pertencem à força pública e 7 são jornalistas. Os danos materiais são incalculáveis.

Sábado, 21 de julho

Aglomera-se a massa humana dos 200 mil manifestantes. Quando a vanguarda entra na Avenida Torino, os radicais do Black Bloc adentram a manifestação e a intifada contra os agentes da ordem recomeça. Durante horas chovem pedras e coquetéis molotov, retrucados com gases lacrimogêneos. Quando os policiais avançam sobre os mais violentos, estes se diluem entre os demais contestatários... para reaparecer pouco depois em outros locais, incendiando carros e cabines, destruindo vitrines de comércio, agências de Correio e bancárias, um posto de gasolina, o andar térreo de um prédio de escritórios públicos etc.

Seis horas depois do início das desordens contam-se 228 casos de atendimento de urgência, entre policiais, jornalistas e manifestantes.

Domingo, 22 de julho

As contas são feitas. “O número de lojas danificadas ascende a pelo menos 400 – assegura Paulo Odone, presidente da Câmara de Comércio – e um milhar as que precisarão ser pintadas novamente. Se forem acrescentados os danos em imóveis urbanos, sinais de trânsito, semáforos, cabines telefônicas, escolas e carros, os prejuízos subirão a 50-60 trilhões de liras, sem contar as perdas dos dias sem trabalhar”.

Metamorfoses da Revolução

Como quem acorda de um pesadelo, nas semanas seguintes a opinião pública européia e de todo o Ocidente tentou interpretar os acontecimentos de Gênova.

Os que achavam que o comunismo havia morrido com a queda do Muro de Berlim não compreenderam por que, nas cidades mais ricas de nossos dias, dezenas de milhares de manifestantes insatisfeitos saíram às ruas para externar seu ódio às atuais estruturas sociais e destruir os “símbolos do capitalismo”.

Porém, essas explosões não poderiam surpreender observadores mais sagazes e não condicionados por visões economicistas e materialistas da História. De fato, o comunismo no século XX não pode ser visto como um fenômeno, monstruoso é verdade, mas isolado. Ele faz parte de um processo que começou antes dele e que continuou depois. Conforme mostra Plinio Corrêa de Oliveira, o comunismo foi a etapa mais avançada de uma crise moral e religiosa que vem se aprofundando desde o século XVI e que teve como predecessores a Pseudo-Reforma Protestante e a Revolução Francesa[42].

Assim, é ilusório imaginar que, com o desmoronar dos regimes comunistas, uma Revolução tão extensa e profunda pudesse, da noite para o dia, evaporar-se como um líquido pútrido ao calor do sol. Quando muito a Revolução haveria de fazer uma retirada estratégica para deixar passar o vento adverso e preparar a desforra. À maneira dos beduínos no deserto que, ante a tempestade de areia, deitam o camelo e se abaixam atrás dele. Passado o vento impetuoso, montam novamente e prosseguem seu caminho.

Foi o que ocorreu, por exemplo, na França do século XIX, durante o período da Restauração monárquica. Um observador superficial acharia que, com a ascensão ao trono de Luiz XVIII, a República estava derrotada e que cessara a convulsão revolucionária. Porém, apenas algumas décadas mais tarde, passando por sucessivos avanços e recuos, o regime republicano vencia estavelmente com a Terceira República[43].

É forçoso reconhecer que, nos 12 anos que vão desde a queda do Muro de Berlim até o saque de Gênova, vem se produzindo um fenômeno análogo ao da Restauração na França.

Tanto mais quanto faltou um esforço de memória coletiva, como ocorreu com os crimes do nazismo. A mídia, de modo geral, evitou focalizar o tema. As revelações terrificantes e o quadro de conjunto apresentados pelo Livro Negro do Comunismo tiveram, assim, pouco efeito, e a grande maioria do público começou aos poucos a esquecer o horror que foi o comunismo. A ponto de, nos próprios países do Leste europeu, antigos líderes do PC voltarem ao governo por via eleitoral e, no Ocidente, alguns partidos comunistas poderem dar-se o luxo de participar do governo.

Mais ainda, uma corrente “ecológico-anarquista” levanta a cabeça e torna-se a ponta de lança de uma nova esquerda, retomando as bandeiras libertárias da Revolução da Sorbonne[44]. Da velha hidra revolucionária, surge essa nova cabeça com ares de novidade.

Revolução Cultural: prioridade do “novo proletariado”

A metamorfose do comunismo e seu requinte anárquico vinham sendo preparados desde antes da queda dos regimes comunistas e da abertura da Cortina de Ferro. E fazem parte da mesma Revolução.

Desde os anos 60, uma esquerda neocomunista tomava distância da ditadura soviética, dava as costas ao “capitalismo de Estado” e concebia a Revolução sobretudo como a luta de um neoproletariado contra as “alienações” produzidas pela cultura dominante: os jovens em revolta contra a sociedade tradicional; o movimento feminista em luta contra as estruturas patriarcais da família; os marginais (drogados, homossexuais, prostitutas e mesmo criminosos) defendendo o “direito” de levar “estilos de vida alternativos”; os imigrantes irregulares; os grupos étnicos minoritários; as comunidades indígenas; o movimento ecológico, propugnando a volta à natureza;  e em geral todos os que, não só recusam as super-organizações estatais ou privadas, mas se colocam contra toda forma de vida institucional.

A prioridade imediata passou a ser a conquista da “liberdade”. Tal revolução atingia a vida quotidiana, com o favorecimento de experiências de “comunas” autogestionárias e, de modo geral, a diluição gradual dos poderes do Estado e sua disseminação em comunidades de base. Por exemplo, as cooperativas de assentados.

Assim, nos flancos da estrutura social apareceu um sem-número de “coletivos” e “grupos alternativos” autônomos, as ONGs etc., que passaram depois a orquestrar-se e constituem hoje a aile marchante, de onde saem os líderes e a grande massa de manobra da revolução “não global”.

Exemplo típico desses grupos “alternativos” são os Centros Sociais Autônomos italianos, que vieram a tomar maior visibilidade em 1995, com a criação, a partir do Centro Leoncavallo de Milão, da rede dos Tute Bianche, figura emblemática da luta contra a globalização.

Uma breve descrição de uma visita a um desses centros, na periferia de Roma, é feita pela escritora canadense Naomi Klein, autora do best-seller antiglobalização No logo:

“Os centros sociais são edifícios abandonados – depósitos, fábricas, fortes militares, escolas – que foram ocupados por invasores e transformados em grêmios culturais e políticos, explicitamente livres do mercado e do controle do Estado. Alguns estimam que há 150 centros sociais na Itália. O maior e mais antigo – Leoncavallo em Milão – é praticamente uma cidade, com diversos restaurantes, jardins, livraria, cinema, uma rampa de skateboard coberta e um clube ....

“Mas os centros sociais são também o início de uma crescente militância política na Itália, colocada para explodir no palco do mundo, quando o G8 se reunir em Gênova no mês que vem. Nos centros, a cultura e a política se mesclam facilmente; um debate sobre  ação direta vira uma grande festa ao ar livre; uma festa rave se realiza ao lado de uma reunião sobre a sindicalização de trabalhadores em fast foods”[45].

Aspectos despersonalizantes e negativos do mundo moderno: caldo de cultura para a rebelião “não global”

Na década de 90 acentuaram-se, um pouco por toda parte, alguns processos globalizantes que dão ao homem da rua a impressão de um mundo orwelliano – gigantesco, frio, distante e inumano – sendo construído sobre sua cabeça, semelhante ao universo descrito por George Orwell, em sua obra 1984. Isso contribuiu para tornar simpáticas algumas das propostas da neo-esquerda radical.

Tais processos de tipo orwelliano ocorrem nos mais variados campos: a constituição de super-Estados, idealizados por técnicos desvinculados da realidade; as megafusões de empresas multinacionais e bancos, diante das quais os particulares parecem anões impotentes; as experiências assustadoras com embriões, a clonagem de seres humanos e o espectro de um mundo science-fiction dirigido por um grupo de cientistas; a formação de imensas coalizões para intervir manu militari em conflitos locais, empregando armas ultra-sofisticadas; a imposição arbitrária de medidas como a “moeda única” ou a construção de um imenso mercado financeiro mundial, abalado por uma seqüência quase ininterrupta de crises e pelo espectro de um “crack” financeiro; a criação de ameaçadores fichários informatizados, contendo quantidades incalculáveis de dados sobre cada indivíduo; o crescimento desordenado de megalópolis pardacentas, sujas, agitadas, rodeadas de imensas e preocupantes periferias de novos imigrados; a extensão e o poderio incontrolável de extensas redes de crime organizado, contra as quais o poder judiciário e as polícias parecem desarmadas, quando não cúmplices; a invasão, dentro de casa, através da TV e da Internet, de borbotões indesejados de informações instantâneas e de pornografia; e finalmente leis cada vez mais constrangedoras e ameaçadoras para o indivíduo, a pretexto de combater discriminações etc.

Compreende-se que ante esse mundo gigantesco e artificial tenham aparecido, como simpáticos, a vida natural, as comunidades fechadas, as cidades pequenas, os alimentos biológicos etc. E que opções como Roquefort x McDonald, milho natural x Monsanto, rebanho x agro-indústria, tenham feito balançar muitos espíritos pouco habituados a analisar os acontecimentos em profundidade.

Ora, é exatamente no mar desse descontentamento difuso e profundo, dessa insegurança no julgar, que as correntes da nova esquerda radical têm sabido pescar, procurando atrair para a causa da “antiglobalização” amplos setores de opinião.

Um é o pescador: o neocomunismo anárquico. Os peixes que ele quer puxar para seu cesto são os componentes da opinião pública mundial. A rede que ele lança é o descontentamento com essa globalização religiosa-sócio-política-econômica, já em curso.

Em nome da luta de classes Norte/Sul, renasce ofensiva contra o capitalismo

Uma dificuldade, porém, surge diante dos mentores do neocomunismo. Eles não podem despertar as desagradáveis reminiscências, ainda recentes, deixadas pelo império soviético. É preciso disfarçar. A nova Revolução não pode ser aquela dos proletários contra os patrões, como nos velhos moldes, mas sim a dos povos pobres do Sul contra os povos ricos do Norte e dos defensores da natureza contra a depredação provocada por um desenvolvimentismo globalizado e maluco.

Assim, sob capa de uma retórica antiglobalização e contra o neoliberalismo vai aparecendo um combate insidioso à propriedade privada, à livre iniciativa, ao capitalismo. Não para voltar ao capitalismo de Estado e aos fracassados planos qüinqüenais da União Soviética, mas para avançar rumo a uma sociedade composta de pequenos grupos autogestionários, que praticam uma economia de subsistência nos moldes ecológicos dos povos indígenas. Isto não nos levará a uma situação completamente caótica?

Capítulo IV

Attac passou por aqui...”

Após o encerramento do Fórum de Porto Alegre, seu Comitê Organizador publicou uma Carta de princípios destinada a orientar a continuidade da iniciativa. O documento assevera que o FSM se opõe “ao uso da violência como meio de controle social pelo Estado” e que não podem participar de suas atividades as “organizações que atentem contra a vida das pessoas como método de ação política”[46].

Porém, nada indica que nos próximos encontros seja proibida a participação dos representantes do governo cubano e dos guerrilheiros das FARC, acolhidos por ruidosas ovações em Porto Alegre...

Sobretudo é chocante que a “Carta” condene o uso da violência unicamente por parte do Estado e que sejam admitidas entidades – como o MST – que atentam contra os bens de terceiros ou até contra a integridade física de pessoas.

Descuido na redação? Ou aceitação de que há formas legítimas de violência? Há antecedentes que mostram ser muito ambígua a posição face à violência de algumas das organizações propulsoras e participantes do FSM.

Mesmo não falando de organizações que, direta ou indiretamente, usam da violência – FARC, zapatistas, grupos indígenas, MST, Tute Bianche etc. – concentremos nossa atenção sobre a Attac, que se apresenta como “séria”, “estudiosa”, “moderada” em suas propostas, mas que na verdade se relaciona com os que propõem e praticam a violência.

Da análise resultará que os comerciantes de Göteborg, na Suécia, exprimiram bem a realidade ao afixarem nas vitrines de suas lojas saqueadas e destruídas, um letreiro com os dizeres: “Attac passou por aqui”...[47]

Importância estratégica das manifestações violentas “antiglobais”

Desde a queda do Muro de Berlim, o moral das hostes esquerdistas estava muito baixo. O evento que lhes trouxe alento psicológico foi sua atuação em Seattle, onde entraram dois ingredientes que se tornariam invariáveis no menu das Cúpulas alternativas: uma conferência acadêmica e, paralelamente, uma batalha de rua[48].

Segundo José Seoane e Emilio Taddei, compiladores do livro De Seattle a Porto Alegre, publicado pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, “Seattle foi em escala mundial ‘o batismo de fogo’ e o momento de consolidação deste vasto, diverso e inusitado movimento planetário contra a injustiça”[49].

Nos protestos posteriores a Seattle houve uma escalada gradual e inexorável da violência. Em Melbourne, em setembro de 2000, mais de 2 mil policiais antimotim tiveram de batalhar durante quase 72 horas com os manifestantes. Em Praga, a reunião do FMI foi suspensa antes do programado por causa dos distúrbios. Em abril de 2001, a Cúpula das Américas, em Québec, deu ocasião a um movimentado braço de ferro entre os militantes e as forças da ordem. Em Göteborg, em julho do mesmo ano, 40 mil manifestantes repudiaram a Cúpula da União Européia e o Congresso teve de ser suspenso antes do fim, por causa da violência nas ruas. Finalmente, a “batalha de Gênova” deixou um morto e 400 feridos.

Ilegalidade e violência: para os contestadores, meios legítimos de ação “pacífica”

 Em geral nas democracias modernas as autoridades policiais determinam áreas e horários nos quais as manifestações são proibidas ou limitadas, para garantir a livre circulação dos cidadãos e o direito das autoridades de se reunirem num ambiente apropriado.

Porém, os organizadores dos Fóruns alternativos passam por cima dessas barreiras. A necessidade de tornar eficaz a luta revolucionária os eximiria das exigências da “legalidade”...

É o que afirma o sociólogo Boaventura de Souza Santos, em palestra proferida no FSM: “Ao nível das formas de atuação, o movimento tem de proceder a uma distinção fundamental entre a violência que deve ser recusada, e a ilegalidade que deve ser acolhida sempre que os meios legais não estejam disponíveis ou não bastem .... Todos os grandes movimentos democráticos começaram com ações ilegais”. Portanto, “há que elaborar uma teoria democrática da ilegalidade não violenta[50].

Essa teoria justificaria também atos de vandalismo, como as depredações de lojas McDonald’s ou de plantações transgênicas. O próprio Fórum de Porto Alegre serviu, aliás, de ocasião para mais uma dessas destruições, transformando José Bové no “herói” da jornada.

Na defesa de Bové – quando este investiu contra a McDonald’s, na França – Attac chegou a declarar oficialmente que a violência “simbólica” seria legítima quando não afeta pessoas e causa danos moderados[51]. Sem explicar, porém, como se evita que a violência “moderada” se torne descontrolada, e sem traçar os limites entre uma e outra.

Outro argumento aduzido por um militante da Attac França é o de que seria legítimo violar a lei em nome do número: “Quando 100 mil pessoas vêm a Millau, no dia do processo dos ‘desmontadores de McDo’, elas legitimam com isso esta ação, entretanto absolutamente ilegal!” [52]. Por que não considerar, então, os outros 59 milhões e 900 mil franceses que ficaram em casa!?

A questão da violência é sistematicamente levantada nos debates prévios às contra-Cúpulas e, por vezes, entidades mais sérias recusam-se a participar delas por não existirem garantias para o desenvolvimento pacífico do projetado evento[53].

Notadamente houve debates prévios à contra-Cúpula de Gênova, por causa dos “Tute Bianche que haviam, de maneira metafórica, ‘declarado guerra’ às autoridades italianas” e do sindicato extremista COBAS, “cujos laços com outros elementos dos centros sociais faziam temer violências que ultrapassavam o quadro fixado pelo GSF”[54].

A curiosa união de “pacifistas” e violentos

Ademais, os organizadores aprovam os treinamentos nos quais os manifestantes aprendem a neutralizar a ação da polícia deixando campo aberto para que os mais extremistas dêem livre curso a seus instintos destruidores.

Tais treinos começaram já em Seattle, prosseguiram em Washington  – incluindo até a análise de vídeos da batalha anterior para corrigir erros – em Göteborg e em Gênova. E foram objeto de amplas reportagens no boletim da Attac feitas pelos representantes da associação nas respectivas manifestações[55].

Mais ainda, as ações são combinadas.

Depois dos distúrbios de Praga, o responsável pelas relações internacionais da Attac, Aguitton, declarou que o que está em jogo é “seguir o exemplo da experiência americana, onde, apesar de desacordos importantes, as redes de jovens e o sindicalismo, no caso a AFL-CIO, puderam estabelecer um diálogo e coordenar suas ações[56].

Em Praga esse trabalho de coligação parece ter sido bem sucedido, permitindo uma minuciosa preparação dos protestos: “Esses grupos [os chamados “grupos por afinidades”] se reuniam num ‘centro de convergência’ que permitia aos delegados elaborarem os planos das manifestações e aos presentes de se formar e de conversar com outras delegações. Uma vez estabelecido o plano da manifestação, cada grupo escolhia seu percurso em função de suas características, arriscado ou não, curto ou longo, etc. Todo o mundo tem suas palavras de ordem, baseadas na ação radical não violenta”[57].

No relato do mesmo Aguitton sobre os distúrbios de Québec, fica ainda mais clara essa estratégia de conjunto por onde as tarefas são divididas conforme as “sensibilidades”:

 “Em Québec, como em Praga, em setembro último, foram elaborados percursos identificados por cores, cada um indicando um grau de risco e de engajamento. O grupo verde era o mais pacífico, tanto pelo percurso escolhido quanto pelas formas das ações. O grupo amarelo, organizado pelo GOMM, dirigia-se, também com métodos pacíficos, para a parte do muro mais próxima ao centro de conferências. .… O grupo vermelho, enfim, formado pelo CLAC e o CASA, era o mais decidido. Mas as coisas estavam claras: uma sonorização repetia com regularidade para os manifestantes que o cortejo envolvia riscos e que outras escolhas eram possíveis.

          “Esta combinação entre a clareza das opções deixadas a cada um e o caráter simbólico – ou em todo caso de uma violência limitada – das ações levadas a cabo facilitava a simbiose entre os diferentes grupos de manifestantes e o caráter popular das iniciativas, incluídas as que se desenvolviam em torno do muro” [58].

No caso de Göteborg, o grupo local da Attac enviou um convite para participar da contra-Cúpula, informando que “a Attac, enquanto organização não tomará parte na manifestação e tampouco na ação dos macacões brancos [os Tute Bianche] (mas os membros de Attac podem evidentemente participar delas individualmente) [59].

 A aliança estratégica entre a falsa moderação e a violência declarada foi se aperfeiçoando. Christophe Aguitton em seu balanço após o inferno de Gênova alegra-se de seu bom funcionamento: “A preço de horas e horas de discussão, a aliança funcionou e até se reforçou com o correr do tempo. A aliança assim criada permitiu integrar num marco comum passeatas totalmente pacíficas enquanto outros praticavam uma ‘violência simbólica’, e desta maneira representar a maioria esmagadora dos manifestantes” [60].

Balanço: 1 morto, 400 feridos, 400 lojas destruídas, várias dezenas de trilhões de liras de prejuízos em imóveis urbanos arrasados, quatro dias de trabalho perdidos, uma grande cidade em estado de choque…

Dirigentes e militantes justificam a violência, a posteriori

Depois das violências em Göteborg houve um debate no seio da Attac. A vice-presidente da associação, Susan George, condenou imediatamente essas violências por razões táticas. Afirmou que elas “dividem o movimento” e afastam os moderados[61]. Porém, a reação majoritária dos militantes e de alguns dirigentes foi a de justificar a violência e condenar... Susan George!

O primeiro a abrir fogo foi o próprio responsável pelas relações internacionais da Attac França, Christophe Aguitton. Segundo ele, “deve-se compreender a impaciência e as frustrações de centenas de milhares de militantes que não vêem ainda nenhuma flexão das políticas [neoliberais]”[62].

Para Alberto Velasco, presidente da Attac de Genebra, “a verdadeira violência é a dos Estados que reduzem suas políticas sociais ou das multinacionais que colocam os empregados na rua”[63].

Já o administrador Pierre Khalfa defende que a “escolha pela não violência” não implica em “dobrar-se aos desejos das autoridades policiais e dos governos”. Donde “o caráter ativo de nossas ações, que podem, portanto, em certos momentos, conduzir a confrontações tensas com a polícia”[64].

O coordenador dos grupos de juventude da Attac em Genebra, Yoann B., afirma não ser possível “privar-se das forças de extrema esquerda” e que é preciso “encontrar uma solução para integrá-las no movimento, a fim que possam se exprimir”[65].

Essa onda de protestos da base militante da Attac forçou Susan George a voltar atrás e fazer um ato de arrependimento público: “Não sou ‘pacifista’ ou gandhiana.  Penso que a violência pode ser justificada; tudo depende das circunstâncias e do contexto político [sic !]. Podemos perfeitamente nos manifestar usando da confrontação física, como a entendem os Tute Bianche (‘meu corpo é uma arma’) .... Tudo é questão de dosagem[66].

Diálogo estratégico... até com o violento Black Bloc

A “batalha de Gênova”, muito mais destrutiva que a de Göteborg, deu azo a novas análises sobre a posição do movimento face à violência. Coube a um membro do Conselho de administração e do Bureau executivo da Attac França, Pierre Khalfa, a tarefa de lavrar um documento de fundo.

Ele parte do pressuposto de que “é quimérico acreditar que o capitalismo aceitará a imposição de medidas que questionem seu funcionamento sem reagir violentamente”. A pergunta portanto é: “Como preparar-se para essa violência, como responder a ela?”.

A Attac deve “atingir simultaneamente quatro objetivos”: – “manter e reforçar os laços com a opinião pública”; – “evitar a divisão do movimento”; – “ser capaz de assumir a radicalidade crescente do movimento”; – e “continuar a demonstrar sua força através de manifestações massivas”.

Para isso, é preciso primeiro evitar “uma escalada rumo ao extremismo nas formas das ações”, para que não seja interrompida “a corrente de simpatia que encontra nas opiniões públicas, o que explica nossa escolha da não-violência”.

Mas “essa recusa [da violência]”, acrescenta Khalfa, “deve simultaneamente acompanhar-se do assumir a radicalização crescente de uma parte do movimento”, o que supõe “a adoção de formas de ação que integrem simbolicamente este radicalismo”.

Khalfa introduz claramente no quadro os grupos violentos: “É nesse marco que devemos situar nossas relações com o Black Bloc. Mesmo que não se trate de um grupo estruturado, mas de uma corrente de geometria variável, ele é portador de uma orientação que fez a opção a favor da confrontação violenta sistemática com a polícia e da destruição dos ‘símbolos do capitalismo’ (agências bancárias, carros...) .…  É preciso dizê-lo claramente: essa orientação não é a nossa. Ela só pode acarretar a diminuição e o isolamento do movimento e é propícia a todas as manipulações. Porém, seria um erro rejeitar essa corrente como estranha ao movimento e considerá-la apenas como um punhado  de provocadores”.

E mais adiante: “essa corrente [dos Black Bloc] pode atrair um certo número de pessoas desagradadas com o sistema e que pensam realmente poder dessa maneira [pela violência] mudar as coisas.

A Attac procura, pois, fazer um duplo jogo: “ao mesmo tempo devemos indicar claramente que os métodos e orientações do Black Bloc não são os nossos e de outro lado não rejeitá-los e tecer um diálogo político com eles[67].

As atitudes violentas das manifestações talvez tenham contribuído para que, depois dos atentados de 11 de setembro, boa parte da população mundial venha suspeitando de ligações dos novos contestatários com o terrorismo.

Para onde irá a Attac?

Em resumo, a atitude da Attac face à violência talvez se espelhe adequadamente na carta aberta a Susan George escrita por Cyril C., um adepto da seção Attac/Paris-Nord-Ouest, e publicada no boletim da associação:

“Estamos engajados numa verdadeira luta de classes a nível planetário, defendendo globalmente os dominados contra os dominadores. Um dos poucos lugares que ainda nos restam (por quanto tempo?) para exercer nosso poder é a rua .... Quem acaba ditando suas preferências é também e sobretudo quem dispõe do poder de se impor, aquele que mete medo no adversário, que inspira temor. .... Penso nesse sentimento de perigo mais ou menos difuso que impregna suas manifestações [do movimento Reclaim The Streets], perigo para o outro lado, evidentemente. O movimento operário jamais foi tão forte e eficaz do que quando não respeitava as conveniências e era percebido como perigoso pelos patrões, como diretamente atentatório a seus interesses. Quem pode dizer que inspiramos hoje um tal sentimento em alguém? Penso que essa constatação deveria nos levar a refletir sobre nossos meios de ação, em lugar de voar em socorro de nossos inimigos, denunciando nossos maus elementos...”[68].

Na medida em que essa opinião exprime uma tendência profunda existente nas bases da Attac, a associação corre o risco de transformar-se numa “organização terrorista” – no sentido técnico da palavra, explicado em recente conferência por Noam Chomsky:

“Uma breve elucidação tomada de um manual do exército dos EUA é bastante adequada: terror é o uso calculado da violência ou da ameaça de violência para obter objetivos políticos ou religiosos através de intimidação, coerção, ou provocação de medo. Isto é terrorismo”[69] .

Como diz o Evangelista: “Pela tua própria boca te julgo...”[70]

Capítulo V

“Cato-comunismo” italiano:
trágicas ilusões e rotundos fracassos

A baldeação ideológica dos católicos europeus, a fim de levá-los a contribuir para organizações revolucionárias do Terceiro Mundo (ver Cap. II), foi muito favorecida na Itália por certas publicações de congregações missionárias que atuam nos países do Sul, em particular na África.

Um exemplo da retórica simplista que usam nos é fornecido por um artigo de “Nigrizia”, dos padres combonianos: “Somos contrários à aldeia global, onde 20% da população mundial engole 83% das riquezas do mundo. Enquanto 80% do mundo vive na orla da miséria ou, pelo menos, para um bilhão e meio de pessoas, na miséria mais negra. Além do mais, esta imensa riqueza está concentrada em poucas mãos: três famílias nos EUA têm o equivalente ao produto anual bruto de 48 países africanos com 600 milhões de habitantes”[71].

Esse tipo de argumentação, que deforma os critérios objetivos de análise, é muito freqüente em publicações da esquerda católica[72].

A preparação psicológica assim levada a cabo no sentido de aliciar os católicos a ajudarem a contestação facilitou inclusive o engajamento de autoridades eclesiásticas e de associações católicas italianas no Genoa Social Forum, a coalizão que organizou a Contra-Cúpula à reunião dos chefes de Estado do G8, em julho 2001[73].

Dois Cardeais entram na liça pró contestação

Os próprios bispos da Ligúria, região da qual Gênova é a capital, publicaram, sob a liderança do Cardeal Tettamanzi, um documento “no qual convidam seus fiéis a não ficarem indiferentes ao G8”. E a saber “ouvir o grito de tantos povos do mundo”, afetados por “uma impensável concentração da riqueza mundial nas mãos de pouquíssimos, indivíduos singulares ou entidades multinacionais”[74].

Mas a verdadeira “bomba incendiária” foi lançada pelo Cardeal Silvano Piovanelli, arcebispo emérito de Florença, em artigo intitulado G8: Diremos não, como Gandhi, no qual empenha seu apoio ao protesto genovês e demonstra simpatia pelos nada pacíficos Tute Bianche:

“O assim chamado ‘Povo de Seattle’ contesta a globalização selvagem e sem regras atualmente em curso, a qual impõe um modelo de desenvolvimento radicalmente centrado sobre o consumismo, coloca como lei absoluta a do mercado e transforma a globalização numa concentração da riqueza do mundo nas mãos de poucos em condições de dirigir todos os aspectos da vida ....

A situação do mundo parece dar razão àqueles que, jornalisticamente, são chamados de Tute Bianche. ....

“Se o G8 quer impor um mundo único, onde domina a única ideologia do dinheiro e dos corpos, então, por fidelidade ao Evangelho, nos pomos ao lado dos Tute Bianche e dizemos: ‘Não’ ao G8! Mas dizemos ‘Não’ sem violência, sem contraposições frontais, sem integrismos”[75].

A pré-Cúpula católica

Nesse ambiente aquecido realizou-se em Gênova, nos dias que precederam às contra-manifestações do GSF, um Encontro católico sob a direção das agências pastorais da Conferência Episcopal Italiana e na presença do Cardeal Tettamanzi.

Com vistas a esse encontro, as associações católicas prepararam um manifesto dirigido aos líderes do Grupo dos Oito, intitulado Estamos aqui para que a terra seja habitável para todos – Manifesto dos católicos italianos para a Contra-Cúpula de Gênova. Neste documento declaravam não poder ficar indiferentes diante das “clamorosas diferenças” que existem “entre a vida dos países ricos e a dos por estes empobrecidos”. Não queriam mais ser “os ricos que olham os pobres necessitados de ajuda”, mas “cidadãos de um mundo e de uma comunidade solidária”.

O Cardeal Tettamanzi proclamou a necessidade de uma participação corajosa na vida política. Por sua vez, Edoardo Patriarca, presidente da Associação Católica de Escoteiros – Agesci – declarou: “Quem são hoje nossos adversários? Usando as palavras do Bispo Tonino Bello, poderíamos dizer ‘todos aqueles que não têm a coragem de mudar’, ou seja os que são prisioneiros do esquema e não se destacam de um módulo...”[76]

Vittório Agnoletto, porta-voz do GSF, timbrou em estar presente a esse “aperitivo” católico.

Participação católica no Genoa Social Forum

Dias depois abria-se o Genoa Social Forum, retomando o slogan do evento de Porto Alegre “Um outro mundo é possível”, assim como o modus operandi, ou seja, um conjunto de conferências gerais, seguidas de oficinas particulares.

Entre os brasileiros, falaram Marina dos Santos, do MST, e Rafael Freire, da CUT. Por seu lado, a equatoriana Aurora Donoso, de Acción Ecológica, asseverava: “Somos nós os credores .... Não existem pobres e nem existem ricos: somente empobrecidos e enriquecidos por este sistema de desigualdades. Nem se deve falar de erradicação da pobreza, sendo pelo contrário, necessário erradicar a riqueza ilegitimamente acumulada”.

Curiosamente, tal pronunciamento levanta uma ponta do véu sobre o verdadeiro sentido dessa ação anticapitalista, que parece não visar a melhoria das condições dos pobres, mas a demolição da classe dos ricos. De fato, tanto a ação comunista na ex-URSS, quanto em Cuba, na Coréia do Norte ou em qualquer outra parte do Planeta, nunca significou melhores condições de vida para os pobres. Pelo contrário, estas pioraram sob o regime marxista. A mística de derrubar quem está acima, para reduzir tudo a uma igualdade básica, conduziu os bolcheviques, como também os seguidores de Mao ou de Che Guevara, e parece inspirar hoje os fautores da Internacional Rebelde.

Trata-se de uma paixão ideológica anticristã que está em jogo – a metafísica e a religião igualitária –  e não um sentimento de pena pelos menos afortunados, nem mesmo um desejo de justiça. Aliás, o próprio sentido da palavra “justiça” vem sendo deturpado para atender a essa ideologia. Justiça não significaria mais “dar a cada um o que é seu”, mas sim reduzir todos à igualdade completa. Neste novo sentido, seriam injustas não somente as desigualdades exageradas ou desumanas, mas toda e qualquer desigualdade, mesmo as proporcionais e harmônicas, como as criadas por Deus. Seriam injustas até as desigualdades naturais entre homem e mulher, entre pai e filho. E na Igreja, entre Papa e Bispos, entre Bispos e Padres, entre Padres e fiéis.

No encerramento falou o sacerdote Luigi Ciotti, a personalidade mais aplaudida dos vários dias do Fórum. Dirigindo-se aos católicos, declarou que “não basta fazer uma escolha de campo, porque é preciso estar no campo” e ter “a coragem de Jesus de expulsar os mercadores do templo”.[77]

Partidos e sindicatos da esquerda moderada haviam hesitado em dar apoio ao Genoa Social Fórum, por estar dominado pela esquerda radical[78]: entre outros pelos comunistas ortodoxos da Rifundazione Comunista e pelo sindicato libertário Cobas. Porém, a católica Rede Lilliput[79] somou-se desde o início à iniciativa. Os lilliputianos fizeram parte da delegação italiana a Porto Alegre onde, junto com Agnoletto, foi “cozinhado” o GSF.

O seguinte despacho de “Adista” descreve o engajamento previsto pela Rede Lilliput na Contra-Cúpula: “Grande é a importância atribuída pela Rede Lilliput ao Fórum alternativo .… no qual a Rede se encarregará de forma especial das sessões dedicadas ao débito ecológico e social e aos acordos comerciais internacionais. Na jornada do dia 20 de julho, a Rede estará, pelo contrário, empenhada na organização .… das ações não-violentas de distúrbio da Cúpula, conduzidas por grupos de afinidade. A Rede propõe a todas as realidades do G8 uma ação unitária de isolamento da zona vermelha por meio de um sit-in/cordão externo que bloqueie a saída da zona” [80].

Portanto, o jornalista Gilles Lapouge, em seu artigo para “O Estado de S. Paulo”, não havia exagerado ao asseverar que, em Gênova, “Católicos podem ter mais força que anarquistas”:

“Os mais perigosos entre os 120 mil manifestantes esperados neste fim de semana em Gênova para a reunião de cúpula do G‑8 não serão necessariamente os anarquistas, os libertários dos ‘macacões brancos’ (Tute Bianche), os trotskistas. Talvez sejam os católicos”. Porque “em razão de seu número, de seu fervor, da autoridade moral conferida por Deus à Igreja e ao Papa João Paulo II, eles terão com certeza uma força de ataque espiritual provavelmente mais mortífera do que as granadas dos arruaceiros”.[81]

Católicos nas barricadas...

Já no mês anterior, sabia-se que a “festa” de Gênova seria movimentada. Associações como Campo antiimperialista tinham anunciado que “todos os métodos que os manifestantes eventualmente sejam obrigados a usar serão lícitos”. E Luca Casarini – o porta-voz dos Tute Bianche – tinha lançado uma formal “Declaração de guerra aos potentados da injustiça e da miséria”.

A atitude do GSF foi ambígua. Condenou a violência, mas não expulsou de seu seio os Tute Bianche e até confirmou que, entre as atividades programadas, haveria “o isolamento da zona vermelha”[82]. Vittorio Agnoletto precisou que “os manifestantes poderão escolher a que tipo de contestação aderir”. O que satisfez aos Tute Bianche, que declararam: “As mediações levaram a uma decisão importante: todos de acordo sobre a desobediência civil, dos católicos aos comunistas, dos ecologistas aos centros sociais”.[83]

Interrogado sobre se os sacerdotes podiam participar da manifestação, Mons. Tettamanzi, Cardeal de Gênova, respondeu que não havia “nenhuma medida” disciplinar contra aqueles que o fizessem. O Prelado sublinhou que “o direito de manifestar o próprio pensamento é sacrossanto”, mas apressou-se a acrescentar que esse direito a manifestar deve ser exercido “sob o sinal do diálogo e não da violência”[84].

Essa permissão dizia respeito ao Pe. Andrea Gallo, sacerdote dos marginalizados de Gênova : já no concerto rock organizado pelo Fórum, o Pe. Gallo apareceu em público ao lado do cantor Manu Chao, agitando uma bandeira vermelha[85].

A autorização também dizia respeito ao “capelão” dos Tute Bianche, o Pe. Vitaliano della Sala, que tinha publicado um comunicado conjunto com Luca Casarini, dizendo que “nós com os nossos corpos, em Gênova, enfrentaremos o Exército dos Poderosos”[86].

De fato, na “batalha de Gênova”, o Pe. Vitaliano viu-se envolvido num obscuro incidente ligado ao incêndio de um carro policial. Com base na documentação fornecida pela polícia, o Pe. Vitaliano foi indiciado por instigação ao crime. Ele se defendeu dizendo que, pelo contrário, tentou dissuadir os jovens de continuar a atacar o blindado.[87]

De qualquer maneira, existem outras fotografias publicadas pelo quotidiano “Il Giornale” e vídeos da polícia nos quais se vê o “capelão” dos Tute Bianche incitando suas ovelhas contra os carabinieri e gritando: “Vai, vai!”[88].

Tímida marcha a ré de católicos “engajados”

Apreensivos pela repercussão negativa da violência desencadeada em Gênova, certos católicos verificaram subitamente que se haviam transformado em “inocentes úteis” (muito mais úteis do que inocentes) de grupos radicais. O que levou alguns de seus líderes a dar marcha à ré.

O cardeal Silvano Piovanelli escreveu um expressivo mea culpa: “Ao final do G8 de Gênova tenho no coração tristeza e vergonha. .... Tristeza também pela ambigüidade do Genoa Social Fórum e a linguagem violenta dos centros sociais que correm o risco de dar aval ou apoiar indiretamente  a violência. .… Vergonha, cada um de seu lado, porque não conseguimos, nem mesmo da parte de todos os grupos católicos, individuar e isolar estes violentos”.[89]

Também o líder dos escoteiros católicos, Edoardo Patriarca, presidente dell'Agesci, em carta publicada no “Avvenire” de 24 de julho lamentou timidamente : “É preciso  ser claro e tomar distância: 'guerra à  zona vermelha' e arrombamento não eram os objetivos do movimento”.[90]

Luigi Bobba, presidente da Ação Católica Operária (Acli) – alguns de seus círculos locais tinham aderido ao GSF – declarou numa entrevista ao “Corriere della Sera” (23/8) que faltou “clareza de conteúdos”, o que “conduziu à existência de uma zona cinzenta entre manifestantes e o Black Bloc”. [91]

Mas não faltaram os impenitentes. O Cardeal Tettamanzi, em entrevista ao “Corriere della Sera”, respondendo à pergunta “Valeu a pena, para um cristão, estar no ambiente infernal em torno do G8?”, declarou: “Sim. Não só valeu a pena, mas era um claro dever. O cristão deve estar em toda parte”.[92]

Pax Christi e a Rede Lilliput tampouco renegaram o envolvimento com os contestatários violentos. Tonio Dell’Olio, secretário de Pax Christi, em “carta aberta aos não violentos” apenas exprimiu “o desejo de abrir uma séria, profunda e sincera reflexão crítica dentro do movimento”[93].

Enquanto a Rede Lilluput, num documento assinado pelo grupo Tavolo intercampagne, declarou que “o GSF deixa às iniciativas futuras uma herança positiva de ‘política das alianças’ e de ‘tecedura de redes’ que nós lilliputianos não podemos não relançar”.[94]

Católicos contestatários advertidos a tempo...

Antes mesmo das arruaças de Gênova, um grupo de intelectuais católicos divulgou um documento convidando os fiéis a não aderirem ao Encontro católico prévio, nem ao manifesto de convocação. Tais adesões, diziam os intelectuais conservadores, atrelam a Igreja a “ideologias e até mesmo a slogans de grupos e movimentos políticos que não têm nada a ver com a nossa fé” e não tomam posição sobre “todos aqueles temas que teriam podido diferenciá-los do povo de Seattle”[95], como aborto, eutanásia etc.

Por sua vez, o Pe. Baget Bozzo criticou a declaração dos bispos da Ligúria dizendo que estes não se tinham dado conta “dos componentes doutrinários do movimento anti-G8” nem de que estavam “diante de um movimento que exprime politicamente os impulsos anticristãos que agitam o Ocidente”. E advertia: “Se houver violência, até os discursos do Cardeal serão usados como legitimação”.[96]

O jornalista Angelo Panebianco dizia não ser compreensível que prelados experientes tivessem dado “uma patente de legitimidade aos contestadores, criando na opinião pública a impressão de que a Igreja compartilha de seu (tão pouco cristão) maniqueísmo moral”, contribuindo “à retomada daquele fenômeno, conhecido como cato-comunismo”.[97]

E numa coluna posterior, deplorava: “Existe algo de paradoxal no fato de que enquanto a esquerda intelectual, desde há tempos, enviou o marxismo às urtigas, este continua a gozar de popularidade em ambientes católicos”.[98]

Quanto ao Pe. Piero Gheddo, do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, declarou que os católicos de esquerda se deixam iludir por uma “análise sobre a pobreza dos povos pobres de origem  marxista (o mundo dividido entre explorados e exploradores)”. Assim, “inevitavelmente se chega à recusa do mundo rico, e os mais exaltados chegam à violência”.

Em conclusão, o Pe. Gheddo afirmava: “As causas da pobreza no Terceiro Mundo são muito mais profundas: históricas, culturais e religiosas. O Evangelho serve justamente para fazer do homem um agente do desenvolvimento”[99].

Em posterior entrevista ao semanário “L’Espresso”, o Pe. Gheddo insistia que na base dessa visualização há uma idéia “desastrosa”: “Uma idéia grosseiramente marxista de que os pobres são pobres porque somos ricos. E que é portanto necessário distribuir com justiça as riquezas do mundo. Nada de mais enganador. Não se trata de distribuir, mas de produzir e ensinar a produzir, portanto de educar”.[100]

Num livro-entrevista sob o título Davi e Golias no G8, o missionário ainda lamentava: “O que desconcerta, de fato, observando a presença católica no movimento antiglobalização, é não encontrar nenhum aporte específico do Evangelho nas teorias de desenvolvimento ou nas leituras sociológicas correntes sobre o Terceiro Mundo. Todos repetem as mesmas cifras, todos propõem as mesmíssimas teses econômicas; paradoxalmente, é como se um ‘pensamento único’ se tivesse apossado dos contestatários, incluídos os fiéis cristãos. .… É-se culturalmente subalterno e então torna-se evidente que – cedo ou tarde – a pessoa é assimilada”.

Tanto mais quanto os detentores desse “pensamento único” demonstram uma total rejeição da religião. Basta citar o comentário do escritor comunista José Saramago ao atentado de 11 de setembro reproduzido no site  do Fórum Social Mundial:

Deus não existe, não existiu e não existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações de seu poder e de sua glória”.

E o seguinte trecho da revista Fórum – Outro mundo em debate, inspirada no FSM de Porto Alegre: “Deus e terrorismo são as duas faces de uma mesma moeda”[101].

Foram avisados. Os “cristãos engajados” estão pois informados do que pensam sobre a religião os ateus e anticlericais da Internacional Rebelde. Abrirão os olhos a tempo? Ou continuarão de braços dados com os piores inimigos da Igreja e da Civilização Cristã?

Capítulo VI

De Bakunin a Chomsky  e Toni Negri

A doutrina de base da Internacional Rebelde 

Engels ironizava as elucubrações e as falidas experiências socialistas que o tinham precedido dizendo que tais sistemas “nasciam condenados a se moverem no reino da utopia”. O estágio de “socialismo científico” teria chegado somente com suas teorias aliadas às de seu colega Karl Marx.

Porém, Engels não condenava a meta última dos socialistas utópicos (Proudhon, Saint-Simon, Owen, Fourrier etc.); apenas considerava que eles não haviam desenvolvido os meios para alcançá-la.

A utopia de uma sociedade em que todos sejam inteiramente iguais e livres, desaparecendo por isso mesmo toda autoridade, e até o Estado, é de fato o elemento comum às três correntes socialistas que derivaram da Primeira Internacional: o anarquismo, o socialismo reformista (ou social-democracia) e o comunismo. As três desejam, para atingir seus fins, a abolição da propriedade privada e do livre mercado, portanto do regime capitalista, e a instauração de uma sociedade sem classes, autogerida pelo proletariado. A divergência entre elas consistia apenas nos meios para chegar até lá.

Os anarquistas de Bakunin defendiam a passagem direta para uma sociedade sem Estado. Os comunistas, liderados por Karl Marx, sustentavam a necessidade de um período de transição em que o Estado seria fortalecido até criar condições para se autodissolver. Os socialistas reformistas recusavam a idéia de uma revolução violenta e sustentavam que seria preciso mudar o regime capitalista de modo gradual, por via legal e pacífica[102].

Anarquismo: fracasso no plano imediato,
porém meta utópica a atingir

Uma tal diferenciação estratégica não é nova no processo revolucionário. Como explica o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em Revolução e Contra-Revolução, em cada uma das etapas da Revolução há sempre duas velocidades de marcha:  “uma, rápida, é destinada geralmente ao fracasso no plano imediato. A outra tem sido habitualmente coroada de êxito, e é muito mais lenta”.

“Dir-se-ia que os movimentos mais velozes são inúteis” –  prossegue o fundador da TFP brasileira. “Porém não é verdade. A explosão desses extremismos levanta um estandarte, cria um ponto de mira fixo que fascina pelo seu próprio radicalismo os moderados, e para o qual estes se vão lentamente encaminhando. Assim, o socialismo repudia o comunismo, mas o admira em silêncio e tende para ele”[103]. O mesmo se pode dizer do comunismo em relação ao anarquismo.

Das três correntes em que se dividiu o socialismo, os anarquistas de Bakunin representavam a marcha mais rápida. Foram esmagados e, hoje, procuram recolher os frutos de sua adesão pertinaz ao utopismo socialista originário.

A corrente anarquista se apresenta para os desempregados, os ecologistas, os círculos de jovens contestatários adeptos da “ação direta” e outros, como a única alternativa viável ao capitalismo. E as teorias do velho Bakunin atraem uma nova geração de discípulos – muitos dos quais nunca ouviram falar dele – desde as ruas de Gênova até os confins de Chiapas ou do Tocantins...

A Internacional Rebelde: instrumento para realizar

a IV Revolução, prevista por Plinio Corrêa de Oliveira

Para entender adequadamente o que representa, hoje, esse novo mundo anárquico que a Internacional Rebelde tende a promover, é preciso localizá-lo no conjunto do processo revolucionário que há mais de cinco séculos vem destruindo a Cristandade.

O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira abordou o assunto na atualização que fez, em 1976, de seu opus magnum  Revolução e Contra-Revolução. Com clareza e profundidade ele resume em algumas páginas o vasto assunto:

“Como é bem sabido, nem Marx, nem a generalidade de seus mais notórios sequazes, tanto ‘ortodoxos’, como ‘heterodoxos’, viram na ditadura do proletariado a etapa terminal do processo revolucionário. Esta não é, segundo eles, senão o aspecto mais quintessenciado e dinâmico da Revolução universal. E, na mitologia evolucionista inerente ao pensamento de Marx e de seus seguidores, assim como a evolução se desenvolverá ao infinito no suceder dos séculos, assim também a Revolução não terá termo. Da I Revolução  [o Protestantismo] já nasceram duas outras [a Revolução Francesa e o Comunismo]. A terceira, por sua vez, gerará mais uma. E daí por diante...

“É impossível prever, dentro da perspectiva marxista, como seria uma Revolução n° XX ou n° L. Não é impossível, entretanto, prever como será a IV Revolução. Essa previsão, os próprios marxistas já a fizeram.

“Ela deverá ser a derrocada da ditadura do proletariado em conseqüência de uma nova crise, por força da qual o Estado hipertrofiado será vítima de sua própria hipertrofia. E desaparecerá, dando origem a um estado de coisas cientificista e cooperativista, no qual – dizem os comunistas – o homem terá alcançado um grau de liberdade, de igualdade e de fraternidade até aqui insuspeitável.

“Como? ­– É impossível não perguntar se a sociedade tribal sonhada pelas atuais correntes estruturalistas dá uma resposta a esta indagação. O estruturalismo vê na vida tribal uma síntese ilusória entre o auge da liberdade individual e do coletivismo consentido, na qual este último acaba por devorar a liberdade. Segundo tal coletivismo, os vários ‘eus’ ou as pessoas individuais, com sua inteligência, sua vontade e sua sensibilidade, e conseqüentemente seus modos de ser, característicos e conflitantes, se fundem e se dissolvem na personalidade coletiva da tribo geradora de um pensar, de um querer, de um estilo de ser densamente comuns.”

O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira prossegue sua análise desta IV Revolução nascente apontando para certos fenômenos que preparam, na psicologia das massas, uma passagem para esse mundo “estruturalista”: a derrocada das tradições indumentárias, a simplificação do trato, a crescente ojeriza a tudo quanto é raciocinado, estruturado e metodizado e a conseqüente hipertrofia dos sentidos e da imaginação, os idílicos elogios a uma futura sociedade pós-industrial etc.

É essa IV Revolução prevista por Plinio Corrêa de Oliveira que busca concretizar-se agora através da Internacional Rebelde.

Conclui ele: “[Os espíritos banais e sem ousadia] sorrirão incrédulos e otimistas ante essas perspectivas, como Leão X sorriu a propósito da trivial ‘querela de frades’, que foi só o que conseguiu discernir na I Revolução  nascente. Ou como o feneloniano Luís XVI sorriu ante as primeiras efervescências da II Revolução, as quais se lhe apresentavam em esplêndidos salões palacianos, embaladas por vezes ao som argênteo do cravo. Ou então luzindo discretamente nos ambientes e nas cenas bucólicas à maneira do Hameau de sua esposa. Como sorriem, ainda hoje, otimistas, céticos, ante os manejos do risonho comunismo pós-staliniano[104], ou as convulsões que prenunciam a IV Revolução, muitos representantes altos, e até dos mais altos, da Igreja e da sociedade temporal no Ocidente”.[105]

*      *       *

A simples leitura de alguns textos de pensadores que vêm servindo de referência ao movimento “não global” – como Chomsky e Negri – é suficiente para indicar que a Internacional Rebelde se inspira na utopia anarquista, fundamento da IV Revolução.

Trata-se, na prática, da parte dos neo-comunistas, da busca de uma doutrina que unifique as propostas expressas pelas diferentes organizações componentes da nebulosa contestatária. Vejamos alguns exemplos.

Noam Chomsky: “guru” dos novos movimentos anticapitalistas

“Aos 10 anos [Noam Chomsky] escreveu um editorial para o jornal de sua escola sobre a queda de Barcelona na guerra civil espanhola, uma ‘lamentação sobre o surgimento do fascismo’. ‘Eu sempre estava ao lado dos perdedores’, disse ele. Recorda ainda: ‘Passava meu tempo livre desde os 13 anos procurando livros anarquistas nas lojas. Fui rapidamente atraído pelas criticas da esquerda anarquista aos bolcheviques, e me interessei pela revolução anarquista espanhola que foi esmagada pelos comunistas’ (...) Em 1964, ele começou a resistir abertamente à guerra de Vietnã. Transformou-se num resistente aos impostos em 1966 e foi preso nos protestos contra o Pentágono em 1967”.[106]

À margem de seus trabalhos científicos na área da lingüística, Noam Chomsky é o mais conhecido dos anarquistas contemporâneos[107]. Por suas posições radicais, tornou-se uma das “estrelas” do movimento antiglobalização.

No Memorial do Fórum Social Mundial, erigido no centro da cidade de Porto Alegre, um de seus textos ocupa lugar de destaque na exposição. E no site de Internet do FSM são oferecidos vários de seus recentes artigos sobre a situação internacional, traduzidos em várias línguas.

Segundo Fred Halliday, professor de Relações Internacionais na London School of Economics ( LES), Chomsky “transformou-se no guru dos novos movimentos anticapitalistas e terceiro-mundistas”.

Quais são as idéias que o fazem tão incensado pelas esquerdas?

Noam Chomsky reconhece de plano que suas idéias são radicais: “As pessoas ficam freqüentemente surpresas quando falo positivamente do anarquismo e me identifico com importantes correntes dentro dele”.

Ateu professo, ele defende que “na natureza humana é essencial .... um desejo de estar livre de qualquer autoridade externa arbitrária”. 

Daí decorre, segundo Chomsky, que “em cada etapa da história, nossa preocupação deve ser a de desmantelar aquelas formas de autoridade e opressão que sobreviveram a uma era em que elas poderiam ter sido justificáveis por razões de segurança, sobrevivência ou desenvolvimento econômico, mas que hoje contribuem para o déficit material e cultural, mais do que para aliviá-lo”.[108]

Por isso, para Chomsky, somente devem ser aceitas aquelas formas de autoridade que, num estágio específico da história ou da vida, podem provar sua necessidade. Por exemplo, a autoridade dos pais sobre as crianças, quando as proíbem colocar a mão no fogo ou atravessar a rua correndo. Todas as demais autoridades deveriam ser supressas!

Ele aprofunda seu pensamento: “sinto que o anarquismo não é um movimento com ideologia. É uma tendência na história do pensamento e da ação humanos que procura identificar as estruturas coercitivas, autoritárias e hierárquicas de todas classes, e rejeitar sua legitimidade. E, se elas não podem justificar sua legitimidade, o que é comum, trabalhar para destrui-las e ampliar os espaços da liberdade”.[109]

 Por isso, “aqueles que adotam o princípio de bom senso, de que a liberdade é nosso direito natural e nossa necessidade essencial, concordarão com Bertrand Russel na afirmação de que o anarquismo é ‘o ideal último para o qual a sociedade deve caminhar’. As estruturas de hierarquia e dominação são fundamentalmente ilegítimas. Podem ser defendidas só em casos de necessidade contingente. Uma justificativa que raramente resiste à análise”.[110]

Autogestão e desmantelamento do Estado

Em matéria de organização econômica, diz Chomsky, o “socialismo libertário” se opõe tanto à propriedade privada e ao salário quanto ao socialismo de Estado, porque ambos são contrários ao “princípio de que o trabalho deve ser empreendido livremente e estar sob o controle do próprio produtor”.

O elemento essencial do ideal socialista deve, pois, consistir em “transformar os meios de produção na propriedade de produtores livremente associados”. E Chomsky insiste em que “se o socialismo significa algo, ele quer dizer o controle do trabalhador sobre os meios de produção e sobre a gestão”. Para um anarquista coerente “essa apropriação deve ser direta e não exercida por uma força elitista agindo em nome do proletariado”.

Haveria um governo autogestionário das comunidades e das empresas, facilitada pelas novas tecnologias: “Os trabalhadores podem perfeitamente tomar a seu cargo seus próprios assuntos de modo direto e imediato”[111].

Percebendo, talvez, que essas receitas para micro-cooperativas acabam sendo quiméricas se aplicadas aos complexos mecanismos de uma sociedade industrial globalizada, Chomsky recusa-se a detalhar  a organização da sociedade anárquica do futuro. Mesmo porque – como dissemos no Capítulo I – a Revolução igualitária não tem em vista construir nada, a não ser acidentalmente. Ela é essencialmente destruidora.

E ele nem sequer acredita que deva haver uma particular tática política. As soluções só podem ser atuais e concretas: “Eu me lembro de um bonito slogan do Movimento dos Sem-Terra do Brasil (que acabei de visitar): eles dizem que precisam ampliar o chão da jaula, até que possam quebrar as barras”.

Explicitando seu pensamento, diz Chomsky: “Mas o elemento essencial do ideal socialista permanece: converter os meios de produção na propriedade de produtores livremente associados, e assim na propriedade social das pessoas que se libertaram da exploração de seu senhor, como um passo fundamental rumo ao reino mais amplo da liberdade humana. O socialismo libertário, aliás, não limita suas aspirações ao controle democrático dos produtores sobre a produção, mas procura abolir todas as formas de dominação e hierarquia em todos os aspectos da vida social e pessoal, uma luta interminável, já que o progresso rumo a uma sociedade mais justa conduzirá a ver e entender novas formas de opressão que podem estar ocultas na prática tradicional e na consciência”.[112]

Chomsky vê o colapso da URSS como uma grande perspectiva que estaria atraindo para o anarquismo os esquerdistas decepcionados com o fracasso da experiência “autoritária” do comunismo, reabilitando assim Bakunin e seus seguidores.  

Toni Negri, o Marx do novo milênio...

É também a onda anarquista que conduz em sua crista outro intelectual vedette do movimento antiglobalização: o italiano Antonio Negri. Muito prestigiado por órgãos da mídia internacional que falam de sua obra – Império –  escrita em colaboração com o americano Michael Hardt, como “trabalho acadêmico espetacular”, “de enorme interesse”, grande êxito editorial. E até como “o mais importante da ultima década” [113].

O diário “The New York Times” encarregou-se de citar conhecidos professores que apontam a obra conjunta de Negri e Hardt como sendo “nada menos que uma reelaboração do manifesto comunista para nossa época .... a nova e grande síntese teórica do novo milênio”.

E o escritor Slavoj Zizek, num ensaio publicado na Alemanha, definiu o livro Império como sendo o “Manifesto Comunista do século  XXI”.[114]

Boa parte dos militantes e pensadores antiglobais adotaram de fato o espesso volume de Negri e Hardt como sua nova bíblia. Outros ainda empenharam-se em debater suas teses[115]. Há uma única tese do livro Império um tanto contestada nos meios marxistas: é a tese de que o Império não se identifica hoje com o “imperialismo norteamericano”, mas está globalizado. No mais, não se notam questionamentos de peso.

No começo dos anos 60, então professor da Universidade de Pádua, Toni Negri juntou-se ao grupo editorial dos “Quaderni Rossi” (Cadernos Vermelhos) que propugnava a revolta contra o regime disciplinar de trabalho e a libertação da sociedade do estreito “fetichismo” da produção. Outro conceito central dessa corrente era a total recusa de toda estrutura organizada, como o Estado, os sindicatos ou os partidos políticos. Negri e seus amigos propunham a “separação” e a “sabotagem” como único meio eficaz para a “desestruturação” da dominação capitalista.

Negri também dirigiu o grupo comunista Potere Operario até 1973, teve relações com as Brigadas Vermelhas[116] e participou da Autonomia Organizzata, uma espécie de ¨anti-partido¨, claramente comunista, mas contrário ao PCI.

Os radicais dessa corrente passaram a levar uma vida marginal e constituíram verdadeiras “comunas autônomas”. Os apelos à sabotagem do Estado criaram o clima subversivo que degenerou na onda de atentados das Brigadas Vermelhas, culminando no assassinato de Aldo Moro. O que valeu a Negri uma prisão preventiva de quatro anos e meio e uma condenação a 17 anos de cadeia.

Tendo sido eleito deputado pelo recém formado Partido Radical, Negri foi libertado em virtude da imunidade parlamentar. Porém, às vésperas de que esta fosse levantada pela Assembléia, escapou para a França, onde se exilou[117].

No exílio, Negri aclimatou-se ao pensamento filosófico pós-estruturalista francês, que insistia na dimensão psicológica e cultural da luta política revolucionária.

Neste período de exílio Negri conheceu seu admirador americano, Michael Hardt, que se tornaria seu discípulo e principal colaborador intelectual.[118]

Do velho imperialismo ao Império de Negri e Hardt

Ninguém melhor que o próprio Toni Negri para nos dar um apanhado de sua comentada obra, num artigo para Le Monde Diplomatique:

Fixando a atenção no fato de que o mercado mundial globalizado teria assumido um poder soberano supranacional, Negri insiste em que esse fenômeno deve ser qualificado de “Império” e não de “imperialismo”. Pois o que caracterizava o imperialismo era a “expansão do Estado-nação para além de suas fronteiras”, e a agressividade “de nações fortes face a nações pobres”. Mas, na atual fase, “não há mais Estado-nação” e “tudo se reorganiza em função do novo horizonte unitário do Império”.

Esse Império “não é americano”, “é simplesmente capitalista: é a ordem [política] do ‘capital coletivo’”, que “se enraíza progressivamente em todas as regiões do mundo” e “aprofunda seu controle sobre todos os aspectos da vida”, tornando-se um poder “biopolítico”.

Esta passagem para a universalização teria sido normal, pois constitui “o resultado das lutas das classes trabalhadoras” dentro das próprias nações; enquanto “a constituição do Império representa a reação capitalista face à crise dos velhos sistemas que servem para disciplinar a força de trabalho em escala mundial”.

Logo – e este é talvez o paradoxo que deixa desconfiados alguns revolucionários superficiais –, a globalização deve ser acolhida com alegria, pois representa uma vitória do proletariado sobre o Estado-Nação, que circunscrevia no estreito âmbito nacional a luta de classes. Mais ainda, “ela inaugura ao mesmo tempo uma nova etapa de batalha dos explorados contra o poder do capital”, na qual se realizará aquele velho sonho de “um dia, unir as classes exploradas no seio da Internacional comunista”.

Aqui se encontra bem expressa, na pena desses teóricos da nova onda, a idéia de que a atual globalização e o neocomunismo, quando bem analisados, não são opostos. Pelo contrário, sucederam a um mesmo processo revolucionário, muitas vezes secular. A globalização prepara a an-arquia igualitária. Na linguagem marxista, a presente globalização seria a “tese”, contra a qual se jogaria a “antítese”, ou seja, o comunismo anárquico; em vista da formação de uma “síntese” nova ainda mais revolucionária. Chegar-se-ia assim ao caos?

Os “novos bárbaros”

Ao tratar das correntes migratórias, Negri e Hardt profetizam em seu livro que “uma nova horda nômade, uma nova raça de bárbaros, se erguerá para invadir e evacuar o Império”[119].

Essa força precisa ser organizada para destruir o Império e apresentar uma nova visão global: “Precisamos de uma força capaz não apenas de organizar as capacidades destrutivas da multidão, mas ainda de constituir uma alternativa por meio dos desejos da multidão. O contra-Império precisa ser também uma nova visão global, uma nova maneira de viver no mundo”[120].

Esses novos bárbaros da “multidão global” devem tornar real a anarquia: “a vontade de ser contra precisa, na realidade, de um corpo completamente incapaz de se submeter a um comando. Ela precisa de um corpo incapaz de adaptar-se à vida familiar, à disciplina da fábrica, às normas de uma vida sexual tradicional etc[121]”. Mas essas recusas são apenas “o começo da política libertadora”[122].

O limiar do novo mundo que anuncia será cruzado quando “a autovalorização, a convergência cooperativa de sujeitos e a administração proletária da produção se tornam um poder constituinte . É este o ponto em que a república moderna deixa de existir e surge a posse pós-moderna. Eis o momento de fundação de uma cidade mundana, forte e distinta de qualquer cidade divina”[123].

E na esperança de verem realizados seus sonhos libertários, Negri e Hardt terminam expandindo sua “irreprimível leveza e alegria de ser comunistas”[124].

‘Êxodo antropológico’ em busca de um novo mundo e uma nova natureza, contrários à Criação feita por Deus

Nesse espírito, as propostas da dupla Negri-Hardt conduzem não só à mais completa amoralidade, mas vão muito além das regras da própria natureza, impugnando as diferenças entre os sexos, as espécies, os gêneros etc.

Com efeito, Negri e Hardt visam transformações inéditas e aberrantes: “Essas disposições bárbaras operam nas relações humanas em geral, mas hoje podemos reconhecê-las antes e acima de tudo nas relações corporais e nas configurações de gênero e sexualidade. Normas convencionais de relações corporais e sexuais entre gêneros e dentro deles estão cada vez mais abertas a desafios e transformações. Os próprios corpos se transformam e sofrem mutações para criar novos corpos pós-humanos”.

Mais ainda, segundo eles, “a primeira condição dessa transformação corpórea é o reconhecimento de que a natureza humana não é, de forma alguma, separada da natureza como um todo, de que não existem fronteiras fixas e necessárias entre o homem e o animal, o homem e a máquina, o macho e a fêmea, e assim por diante; é o reconhecimento de que a própria natureza é um terreno artificial aberto a todas as novas mutações e misturas, a todos os hibridismos. Nós não apenas subvertemos conscientemente as fronteiras tradicionais, vestindo-nos de drag, por exemplo, como nos movemos numa zona criativa e indeterminada au milieu, no meio e sem consideração por essas fronteiras. As mutações corporais de hoje constituem um êxodo antropológico e representam um elemento extraordinariamente importante, mas ainda ambíguo, da configuração do republicanismo ‘contra’ a civilização imperial”[125].

E logo adiante: “Certamente precisamos mudar nossos corpos e nós mesmos, e de modo talvez muito mais radical do que os autores cyberpunks imaginam. No mundo contemporâneo, a mutação estética do corpo, hoje comum, como o piercing,  a tatuagem, a moda punk e suas varias imitações, são indicadores iniciais dessa transformação corporal”[126].

É o sonho – ou delírio! – ufanamente desvairado de um mundo que tenha abdicado inteiramente, não só da moral e da Civilização Cristã, mas também da cultura, da razão e da própria ordem natural criada por Deus. E com isso rejeita o pouco que ainda resta de submissão dos homens a Deus e toda esperança de salvação sobrenatural. Os arautos da era anárquica e “pós-humana” fazem-se assim continuadores de todos os delírios, aberrações e revoltas da História, a começar pela de Lúcifer, com o que se jogam num abismo de abjeção que faz lembrar o sonho diabólico de destruir a obra criadora de Deus.

Conclusão

“Um outro mundo é possível”?   Sim, a sociedade orgânica e cristã!

No decurso deste trabalho ficou demonstrado que, das cinzas pútridas do comunismo, está renascendo, metamorfoseada e requintada, uma imensa revolução de cunho anárquico.

Mostramos como se tenta reconstituir o poderio das esquerdas, detendo-nos sobretudo no megaevento de Porto Alegre, plataforma de lançamento da nova Internacional Rebelde.

Indicamos os pressupostos teóricos e as conseqüências práticas do mundo pós-capitalista que essa Internacional vai delineando: autogestão, subconsumo miserabilista, democracia direta, ecologismo extremado, indigenismo, “cidadania planetária”. Ou seja, uma República Universal composta de pequenas comunidades autogeridas, à maneira das tribos indígenas.

Denunciamos a ambigüidade benevolente do movimento em relação à violência. E – ponto importante – verificamos a cumplicidade da “esquerda católica” com esse programa anticristão. Constatamos também a impopularidade da neo-revolução junto aos católicos fiéis à doutrina da Igreja, particularmente na América Latina (cfr. Cap. II).

De outro lado, alguns males que estão advindo com a globalização já produzem um desagrado profundo, e podem gerar campo propício para o avanço do neocomunismo anárquico. Por isso denunciamos neste livro: não é a Internacional Rebelde que vai sanar esses males, pelo contrário, ela vai agravá-los até o inimaginável.

Ao lançar-se não apenas contra os males da globalização, mas contra os próprios fundamentos legítimos do capitalismo, quais sejam a propriedade privada e a livre iniciativa, os novos contestatários destroem o pouco que ainda resta do edifício sagrado da Civilização Cristã de outrora. E retomam a bandeira negra do anarquismo procurando ir além de Marx e de Lênin, num comunismo-ecológico que tudo pretende derrubar em seu caminho.

Com efeito, os novos contestadores completam e radicalizam a demolição já iniciada pelos globalizantes, como seja a de todas as autoridades legítimas e de todas as estruturas naturais, desde a família até o Estado, passando pelos corpos intermediários orgânicos: grupos sociais, municípios, regiões.

Pelo que, torna-se premente uma renovada vigilância face ao perigo que a neo-revolução anárquica representa para os restos de civilização no nosso conturbado início de milênio. Perigo que não está tanto na força dos que a promovem, quanto na inércia dos que são suas vítimas. Aqueles que impulsionam o neocomunismo anárquico, como os que o seguem por convicção, constituem pequena minoria. Mas todas as revoluções foram desencadeadas por minorias organizadas. Aguerridas, dominaram elas as grandes maiorias, cujo medo ou fraqueza de alma as tornaram cúmplices de seus objetivos e de seus crimes.

Os autores deste estudo não aceitam a tirania de tais minorias. Tampouco permanecem passivos face à sociedade ocidental tal qual ela é hoje, com seus desequilíbrios, suas injustiças, seus frenesis. E também eles se perguntam: Um outro mundo é possível? Respondem categoricamente: Sim!

Nem Davos, nem Porto Alegre,  mas a Civilização Cristã!

Das tribunas da mídia e dos que se aplicam a modelar a opinião pública, surge habitualmente uma representação simplista da realidade, que reduz tudo a uma opção entre duas versões da globalização: a mercantilista e a comuno-anárquica.

De um lado estaria o partido de Davos, reunindo os que desejam estender ainda mais uma globalização capitalista, impulsionada a partir da cúpula financeira; do outro lado estaria o partido de Porto Alegre, aparentemente sem centro motor, exigindo uma globalização sob a ótica dos “excluídos”.

A globalização “davosiana”, encaminharia a sociedade para um “paraíso” técnico de hiperprodução dirigida, transformando o mundo num gigantesco shopping-center, no qual cada indivíduo teria possibilidades ilimitadas de consumo.

A globalização “porto-alegrense”, por sua vez, nos levaria ao “paraíso” da solidariedade entre os homens e com a natureza. Feito de pequenas comunidades rurais à maneira de tribos indígenas, vivendo frugalmente num sistema de autoconsumo, embaladas por longas horas de ócio, onde não haveria autoridades nem desigualdades, uma vez que tudo seria decidido por consenso. E, ao que parece, consenso produzido por uma estranha inspiração mística, que faz lembrar a ação dos pajés e o conselho das sibilas.

Em ambas as opções, e como nota comum entre elas, uma sensualidade desbragada, permitindo e até incentivando todo prazer sexual, natural ou contra a natureza, como a proclamar, por sua linguagem brutal e degradante, que os direitos do homem são os direitos da carne.

Tudo nos é apresentado como se, no mundo atual, não houvesse lugar para outra alternativa senão a de seguir uma dessas duas formas de globalização, aparentemente antagônicas, mas que na verdade se reduzem a prometer uma felicidade puramente material e terrena.

Um católico autêntico, colocado ante essa opção, o que diria?

Em primeiro lugar que se trata de um falso dilema. O Evangelho, lidimamente interpretado pela doutrina tradicional da Igreja, convida o homem, sob o influxo da graça, a aperfeiçoar a si próprio e a natureza. Portanto a desenvolver a cultura e a civilização, a ciência e a tecnologia, caminhando resolutamente nas vias do progresso. Mas um progresso que não é unicamente nem predominantemente material, um progresso em que a alma humana, mais ainda do que o corpo, encontra seu bem-estar na prática das virtudes cristãs, e que concebe a vida nesta Terra como um estágio de prova para alcançar a vida eterna no Céu.

A sociedade humana, assim entendida como reflexo imperfeito mas real do convívio celeste, é o que de mais próprio pode haver para aquietar e satisfazer, tanto quanto  possível, as aspirações dos homens, considerados na reta ordenação de seu ser. Exemplo histórico de um esplêndido impulso nessa direção foi a Civilização Cristã medieval, tão elogiada pelos Papas, que tornou a Europa o continente líder do mundo, e cujo pleno desabrochar se viu infelizmente truncado pelo processo revolucionário, o qual chega hoje a seu paroxismo.

A Civilização Cristã é possível e desejável

Assim, o verdadeiro caminho para melhorar as condições de vida dos necessitados, como para ordenar toda a sociedade, não está em “revoluções pseudo-messiânicas” que visam, na verdade, implantar um igualitarismo desumano e antinatural, sob pretexto de acabar com a pobreza: “Pobres, sempre os tereis entre vós” (Jo 12,8), disse Nosso Senhor, increpando  Judas.

Tal melhoria das condições de vida dos necessitados é altamente desejável e deve ser buscada, mas só é obtenível por meio de uma verdadeira evangelização cristã, unida a um impulso civilizador, como o realizado por um São Francisco Xavier ou um Beato José de Anchieta, entre muitos outros. É a partir da educação religiosa e moral dos povos que a própria sociedade temporal pode beneficiar a todos; cada um a seu modo. “Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, e o resto vos será dado por acréscimo” (Lc 12, 31).

É possível reencetar essa via, neste início de milênio? Equivale a perguntar: este homem, cuja cabeça e cujo coração estão afetados por um câncer, pode ainda vir a gozar de boa saúde? A resposta só pode ser: se houver meio de extrair totalmente esse câncer, sim; se não houver meio, não. Os que procuram, na sociedade atual, encontrar soluções paliativas, sem extirpar completamente o câncer revolucionário anticristão, assemelham-se aos que crêem ser possível curar um doente grave com antidepressivos, ou diretamente com veneno.

A pergunta então se desloca e não podemos recuar diante dela: é possível ainda extrair o câncer revolucionário da sociedade atual? Ou o grau de expansão do mal é de tal monta, que o doente já está desenganado?

Se considerarmos a textura da sociedade como trabalhada unicamente por mãos humanas, nada indica que uma solução ainda seja alcançável. A podridão foi longe demais! Estamos chegando já ao caos, à falta de lógica e de razão nas atividades públicas como nas particulares. São caóticas essas manifestações que estamos analisando, contrárias umas as outras, em meio às ruínas do edifício da Civilização Cristã e tendo como espectadores um público aturdido e inerte. Tudo então parece perdido.

Mas se tivermos em vista que a Providência Divina nunca abandona os que a Ela recorrem filialmente, e que a ação sobrenatural pode fazer sentir-se em profundidades insuspeitadas, não só das almas individualmente consideradas como também do tecido social, então todas as esperanças são possíveis.

Esperanças que em nenhum momento autorizam a cruzar os braços ou cessar a luta, pois Deus não ajuda os preguiçosos, pelo contrário, a vitória é dada aos que batalham.

Tal impostação confiante encontra um eco celestial  na Mensagem de Fátima, na qual, para além de todas as calamidades, de todos os sofrimentos e de todas as lutas que se vislumbram no horizonte, encontramos a promessa inefável e reconfortante da Virgem Santíssima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”.

Povo e Massa, segundo Pio XII

Qual é então esse ideal católico de sociedade?

Na concepção  católica de sociedade orgânica, o homem não é simples peça de uma máquina econômico-financeira globalizada, nem um simples número despersonalizado numa tribo primitiva. Ele é membro vivo de uma família, célula atuante de um «povo autêntico», como se depreende dos luminosos ensinamentos do saudoso Papa Pio XII – aplicáveis a todos os tempos e lugares – que é bem o caso de aqui relembrar:

“Povo e multidão amorfa ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos.

1. “O povo vive e move-se por vida própria ; a massa é em si mesma inerte e não pode mover-se senão por um elemento extrínseco.

2. “O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – na sua própria posição e do modo que lhe é próprio – é uma pessoa cônscia das suas responsabilidades e das suas próprias convicções. A massa, pelo contrário, espera o impulso que lhe vem de fora, fácil joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões, pronta a seguir, sucessivamente, hoje esta, amanhã aquela bandeira.

3. “Da exuberância de vida de um verdadeiro povo, a vida difunde-se abundante, rica, no Estado e em todos seus órgãos, infundindo-lhes, com vigor constantemente renovado, a consciência de sua própria responsabilidade, o verdadeiro sentido do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente manejada e utilizada, pode também servir-se o Estado; nas mãos ambiciosas de um só, ou de vários, que as tendências egoístas tenham artificialmente coligado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa reduzida a não ser mais do que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo. O interesse comum recebe daí um golpe grave e durável, e a ferida torna-se rapidamente muito difícil de ser curada.

4. “O Estado não contém em si e não reúne mecanicamente num dado território uma aglomeração amorfa de indivíduos. Ele é, na realidade deve ser, a unidade organizadora de um verdadeiro povo”[127].

O texto de Pio XII é bem mais extenso do que o excerto aqui reproduzido. Porém, o ideal de sociedade orgânica nele exposto pode ser compendiado em dois princípios basilares:

a)       Princípio de subsidiariedade: Os organismos superiores nunca devem chamar a si atividades que os grupos inferiores sejam capazes de realizar com os próprios recursos. Deve haver autonomia para que os organismos inferiores atinjam seus fins, por si mesmos, em todos os campos em que isto lhes for possível. A interferência dos superiores no âmbito inferior deve ter um caráter subsidiário, isto é, auxiliar, e supletivo, ou seja, de complementação.  Tal princípio vem exposto também em documentos de Pio XI (Encíclica Quadragesimo Anno) e João XXIII (Encíclica Mater et Magistra);

b)       Princípio de organicidade: As instituições sociais e econômicas devem funcionar como órgãos dentro de um organismo vivo, com funções específicas e particularizadas, desde os vitais até os mais insignificantes, como o coração e uma falange do dedo mínimo. Todos são necessários para o bom funcionamento e obedecem a uma hierarquia de valores. Suprimido qualquer deles, a sociedade se ressentirá.

A esses dois princípios poder-se-ia acrescentar um terceiro, que complementa a noção de sociedade orgânica, exposta neste trabalho:

c)        Princípio universitário: Quando uma célula social atinge certo grau de importância, é normal que suas atividades não se restrinjam à consecução do  fim específico para o qual foi criada, mas tenda a abarcar diversos aspectos da vida de seus membros. É o caso das Universidades, como também das Corporações medievais. É impossível orientar a vida de uma comunidade tão abrangente sem dispor de alguns poderes soberanos, como por exemplo o poder de polícia nos limites daquela comunidade.

Plinio Corrêa de Oliveira descreve a sociedade orgânica

Desenvolvendo este magnífico ensinamento de Pio XII, Plinio Corrêa de Oliveira explicou as diferenças entre “a sociedade cristã e orgânica e a sociedade mecânica e pagã” num estudo para o mensário Catolicismo. Os órgãos de um corpo, dizia ele, agem por um movimento que lhes vêm da vida presente em cada célula e têm um espaço de autonomia e uma grande capacidade de se adaptarem por si mesmos a novas condições. A máquina, porém, é artificial, está inteiramente sujeita à vontade do homem e o movimento de suas peças vêm de um motor extrínseco a elas, ao qual obedecem cegamente.

Analogamente, numa sociedade bem ordenada, o organismo social vive da vida de suas células fundamentais – as famílias – que por sua vez tecem órgãos diferenciados e com tarefas específicas, mas harmoniosamente ligados entre si. Um modelo histórico dessa “sociedade orgânica” baseada na família foi a ordem feudal da Idade Média, da qual subsistem ainda magníficas reminiscências.

“Um dos traços característicos da Civilização Cristã edificada no Ocidente, depois da invasão dos bárbaros,  consistiu em fazer da família não só uma instituição de vida puramente doméstica e privada, como é hoje, mas a unidade propulsora de todas, ou quase todas, as atividades políticas, sociais e profissionais.

“A propriedade imóvel era freqüentemente mais familiar do que individual. A casa, a terra, o feudo eram considerados muito mais como o patrimônio da família, do que do indivíduo. O mesmo se deu no artesanato e no comércio, em que se manifestou a tendência de transmitir a profissão de pai para filho, em várias gerações. ....

“Na administração tanto feudal, quanto municipal ou rural; nas finanças, na diplomacia, na guerra, em todos os campos enfim, notamos que a família enquanto tal era, em toda a medida do possível, a grande unidade de ação e de propulsão. Os feudos, as corporações, as universidades, os municípios, nada havia que escapasse à penetração da família. De tal sorte que o Estado – um Reino, por exemplo – não era senão uma família de famílias, governada por uma família: a família real[128].

“Com as reservas com que imagens como esta devem ser empregadas, pode-se dizer que a família penetrava todas as partes do organismo social, como as artérias penetram e irrigam todos os membros do corpo humano. E, assim, a família comunicava um quê de especialmente vivo, plástico, orgânico a todas as instituições políticas, sociais, econômicas etc. ....

“Se considerarmos as relações entre o todo e as partes, o Estado e os órgãos sociais de que se constituía a nação, a impressão de organicidade vital se torna ainda mais pronunciada: cada órgão é um pequeno todo, como que um reino em ponto pequeno ou até minúsculo, dotado dentro de sua esfera de certas funções governamentais, legislativas, executivas ou judiciárias. Assim, na família, o Pai era um verdadeiro Rei em miniatura, pelo poder que exercia sobre a esposa e os filhos. Característico era o axioma: o Pai é o rei dos filhos; e o Rei é o pai dos pais. Em algumas famílias, até as leis de sucessão eram peculiares e diversas das que se aplicavam em todas as outras. .…

“O Rei – simplificando muito as coisas, é claro – tinha apenas a função supletiva de fazer o que por si estes vários órgãos não poderiam realizar, isto é, a tutela dos interesses comuns e supremos que extravasavam do âmbito próprio de todos os órgãos, a manutenção de um justo equilíbrio entre eles, e a vigilância para que no recesso de nenhum deles se ofendessem os princípios fundamentais da moral e da Civilização Cristã.

“Considerado em seu conjunto este quadro muito sumário, vê-se quanto ele é orgânico. Cada elemento celular tem funções inteiramente peculiares. Cada qual tem, para o exercício de suas funções, atribuições que lhe tocam por direito próprio, e se move por uma energia que age de dentro para fora, e não de fora para dentro. O bom andamento do todo depende muito mais do bom andamento de cada parte, do que da mera ação do organismo central”.[129]

Esse magnífico resumo da ordem orgânica medieval contrasta de modo abismal com o projeto moderno de globalização, frio e burocrático, como também com a sociedade anarco-tribal, composta de células inertes e iguais. E ilustra de modo admirável o ensinamento de Pio XII na sua inspirada Alocução de Natal de 1944, na qual fazia a distinção essencial entre “povo” e “massa”.

 Perspectivas finais

Atingido esse patamar extremo de caos em que nos encontramos, é possível outra saída que não seja a de retornar, com ajuda da Providência Divina, aos princípios básicos que fizeram outrora a grandeza de Civilização Cristã, “austera e hierárquica, fundamentalmente sacral, antiigualitária e antiliberal”[130]? A volta do espírito religioso que se nota em parcelas muito consideráveis da juventude atual, não será já uma preparação providencial para isso? A receptividade crescente à Mensagem de Fátima, não indica almas que procuram um rumo fora dos indicados pela mídia?

Se convulsões espetaculares vierem a sacudir o mundo, seja por meio da guerra ou atentados terroristas inesperados, seja por meio da intensificação e caotização produzida pelas correntes migratórias, seja ainda por outros meios naturais ou sobrenaturais que não nos abalançamos a prever, uma vez em meio à total perda das bússolas psicológicas ou morais, não poderá ocorrer um fenômeno semelhante ao que se deu com a queda do Império Romano e a invasão dos bárbaros? É uma pergunta.

 Uma sociedade assim sofrida e liberta do guante de ferro dos  coletivismos, dos socialismos, das globalizações forçadas, voltando-se para Deus e impelida pela graça divina na rota assinalada pelo Decálogo, não poderia começar a caminhar por si mesma de modo orgânico e natural?

Nessa hipótese, a família católica voltaria de novo à plenitude de ação e de influência que outrora atingiu; os grupos intermediários seriam livres para agir ordenadamente conforme seus modos próprios de ser; o Estado, atuando segundo o princípio de subsidiariedade, respeitaria as autonomias legítimas de cada região, bem como de cada grupo social intermediário; ao mesmo tempo que o poder soberano, dentro de sua órbita suprema, seria honrado, vigoroso e eficiente.

Respeitando estes princípios, a que termo final chegaríamos? Constituir-se-ia uma nova Idade Média, porém mais requintada? Ou caminharíamos para um futuro absolutamente novo e imprevisível?

Ambas as hipóteses são possíveis. A natureza humana e os princípios básicos da Civilização Cristã são invariáveis para todos os tempos e lugares. De modo que a nova ordem de coisas terá de ser idêntica à antiga em seus traços essenciais.

Mas, de outro lado, há aspectos inerente à nossa época, que diferem das anteriores, e que é indispensável levar em consideração. As condições materiais da vida se transformaram profundamente; o espírito humano, também ele, passou por inúmeras experiências e situações antes desconhecidas, que lhe abriram novos horizontes. Nada seria mais fora da realidade do que abstrair destas modificações. Neste particular, é preciso não fazer muitos planos. Os verdadeiros fundadores da Idade Média – São Bento, São Bonifácio, Carlos Magno e outros – não tinham em mente o século XIII tal qual ele existiu. Tinham simplesmente a intenção genérica de edificar um mundo cristão e foram resolvendo com profundidade de vistas e senso católico os problemas que estavam a seu alcance, sem perder-se em conjecturas vãs. Nada de planos meramente teóricos, elaborados em gabinetes de especialistas ou em contra-Cúpulas alternativas.

Tais são as considerações e hipóteses que aqui levantamos, no intuito de abrir os horizontes do leitor para outras possibilidades que não aquelas oferecidas pela propaganda. A restauração da Civilização Cristã não é utópica, ela é uma possibilidade constante da natureza humana, na retidão de seu ser[131]. Ademais, ela nos foi prometida em Fátima. Diante dessa perspectiva radiosa “os céticos poderão sorrir, mas o sorriso dos céticos jamais conseguiu deter a marcha vitoriosa dos que têm fé”[132].


[1] Este relacionamento com o terrorismo islâmico não é mera hipótese. Durante as violentas manifestações dos contestatários em Gênova, foram “identificados, entre os manifestantes, agentes da Jihad libanesa, do Hamas, do PKK curdo e de outros muçulmanos fundamentalistas .... Esta convergência entre não-globais e islamismo militante apareceu ainda mais claramente por ocasião do USA Day de 10 de novembro 2001. Os diversos Fóruns Sociais manifestaram sua total oposição ao esforço bélico comum contra o terrorismo islâmico, chegando até a incitar os soldados a desertar das Forças Armadas” (Da Genova alle Twin Towers: l´Occidente nella tenaglia,  “Tradizione, Famiglia, Proprietà”, Roma, setembro/novembro/2001, p. 3).

[2] A previsão de que o comunismo retornaria metamorfoseado foi feita em diversas ocasiões pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Por exemplo, no artigo Atualidade da Mensagem de Fátima, 75 anos depois, publicado no  "Diário Las Américas", Miami/EUA, 14-5-92, no qual ele afirma que “os  verdadeiros fins da perestroika eram na realidade obscuros. Talvez não esteja longe o dia em que a autenticidade discutível da retração do comunismo revele que esta não foi senão uma metamorfose, e que da larva decomposta sai voando a ‘linda’ borboleta da autogestão”.

[3] Diretor do mensário parisiense “Le Monde Diplomatique”. A respeito de sua importância no movimento contestatário ver Capítulo I.

[4] O uso da expressão “capitalismo” num sentido pejorativo e demagógico tem sua origem em Marx e seus sequazes. Nesse sentido, obviamente falso, e que precisa ser “exorcizado”, capitalismo significaria a preponderância absoluta do capital sobre o trabalho. De onde resultaria que todo capitalista necessariamente seria um explorador do trabalho do operário, buscando indefinidamente lucros para si, de modo egoísta. Tal é o sentido inaceitável trombeteado pela propaganda comunista, procurando tornar odioso o capitalismo, a fim de obter adesões para um socialismo “redentor” do operariado.

Ora não é essa, nem de longe, a definição de capitalismo, embora não neguemos que haja abusos e estes devam ser coibidos. Em seu sentido próprio e natural, capitalismo é o regime baseado na propriedade privada, que permite amplamente a livre iniciativa dos particulares e confere ao Estado um papel subsidiário na economia como na sociedade. Ele tende a favorecer não apenas os que possuem o capital, mas também largamente os operários e toda a sociedade.

Por isso Pio XI ensina: “Não é vedado aos que se empregam na produção, aumentar justa e devidamente a sua fortuna; antes a Igreja ensina que é justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens, se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição” (Encíclica Quadragesimo Anno, 15-5-1931, Vozes, Petrópolis, p. 51).

Por sua vez, Pio XII, tratando do capitalismo aplicado ao campo, declara: “Todo espírito reto deve reconhecer que o regime econômico do capitalismo industrial contribuiu para tornar possível, e até estimular o progresso do rendimento agrícola; que ele permitiu, em inúmeras regiões do mundo, elevar a um nível superior a vida física e espiritual da população do campo. Não é pois o regime em si mesmo que se deve acusar” (Discurso de 2-7-1951; Discorsi e Radiomessaggi, vol. XIII, pp. 199/200).

[5] Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª ed., 1998, p. 173.

[6] Alocução de 6-2-81 aos Religiosos e Sacerdotes participantes do I Congresso Nacional Italiano sobre o tema Missões ao Povo para os Anos 80, in “L'Osservatore Romano”, 7-2-81.

[7] O presidente de honra era Ignacio Ramonet; o presidente efetivo, Bernard Cassen (redator e diretor administrativo do mensário); e um de seus vice-presidentes a jornalista e escritora franco-americana Susan George (também ela, redatora do “Diplô” e presidente do Observatório da Mundialização).

[8] Secretário da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, vereador do PT por São Paulo.

[9] Empresário brasileiro. Presidente do Conselho de Fundação do Instituto Ethos.

[10] Cfr. Bernard Cassen, Uma virada política e cultural, in Fórum Social Mundial – A construção de um mundo melhor, Veraz Comunicação et al., Porto Alegre, outubro de 2001, pp. 15-17.

[11] Cfr. Gonzalo Guimaraens, Fórum Social Mundial de Porto Alegre: laboratório da subversão, Catolicismo, março de 2001, p. 19.

[12] Cfr. Renato Vasconcelos, Fórum Social Mundial: uma nova Internacional Socialista?, Catolicismo, março de 2001, p. 25.

[13] Inegavelmente, as oficinas mais concorridas, e que deram o tom ao evento, foram as de caráter revolucionário mais carregado como as seguintes: Resistência armada ao neoliberalismo – Alternativas de Poder Popular na América Latina e África, organizada pelo Instituto Olga Benário Prestes; Política Neoliberal e Conflito Armado, coordenada pela denominada Vicaría del Sur – Diócesis de Florencia; e Plano Colômbia, coordenada pela Attac do Rio de Janeiro. Num dos dias, o número de participantes inscritos nas oficinas relacionadas com a “resistência armada” foi tal que os organizadores decidiram juntá-las no Teatro do IPE, que ficou completamente lotado com mais de 300 pessoas e muitos outros não puderam entrar.

O fervor pelas armas já tinha marcado um dos primeiros eventos do FSM, a Marcha Contra o Neoliberalismo e Pela Vida, da qual participaram 15 mil pessoas: “Bandeiras com a foice e o martelo, retratos de Lenine, brados em favor de Cuba comunista, das guerrilhas colombianas e do Movimento dos Sem-Terra (MST) deram a tônica caldeada e efervescente da manifestação” (cfr. Gonzalo Guimaraens, Fórum Social Mundial de Porto Alegre: laboratório da subversão, Catolicismo, março de 2001, p. 19). 

Naomi Klein comenta ainda que “nada lá era mais importante do que Cuba”: “Bastava que os conferencistas mencionassem a Ilha para que os presentes prorrompessem em gritos: ‘Cuba, Cuba, Cuba!’” (cfr. Naomi Klein, Acreditando no Fim do Fim da História, in “The Nation magazine”, 19-3-2001). No 30 dia do Encontro houve, por exemplo, uma grande ovação a Ricardo Alarcón, presidente do Parlamento cubano, que fustigou em seu discurso os Estados Unidos e a “ditadura global”, esquecendo-se da “ditadura local” que seu partido exerce na infeliz ilha...

[14] Cfr. Fórum Social Mundial – A Construção de um mundo melhor, pp. 24-25.

[15] Cfr. “Grain de Sable”, nº 206, 30-1-2001.

[16] Cfr. Acreditando no Fim do Fim da História, in “The Nation magazine”, 19-3-2001.

[17] É curioso notar, de passagem, essa afirmação de que todos vieram do Partido Comunista! Corresponde bem à lúcida observação de Plinio Corrêa de Oliveira, de que o comunismo não morreu, apenas está se metamorfoseando.

[18] Cfr. Acreditando no Fim do Fim da História, in “The Nation magazine”, 19-3-2001.

[19] Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução”  Artpress, São Paulo, 4a. ed., 1998.

[20] Cfr. “Le Monde Diplomatique”, fevereiro de 2001.

Por sua vez, Plínio Arruda Sampaio, três vezes deputado federal pelo PT e hoje editor da revista “Correio Cidadão”, previa como resultado do Fórum Social Mundial: “O objetivo de Porto Alegre”, afirma, “é dar os primeiros passos para construir uma frente internacional, uma espécie de ‘quinta internacional’, a mais ampla possível, em nada rígida nem vertical como as quatro primeiras” (cfr. Sergio Ferrari, Le Sud fait la fête à Porto Alegre, in “Le Courrier”, Genebra, 25-1-2001).

[21] Cfr. Ignacio Ramonet, “¡Protestatarios del mundo, uníos!”, “El País”, Madri, 24-6-2001.

A respeito das semelhanças e diferenças da nova Internacional Rebelde com a Primeira Internacional, seguem alguns comentários dos argentinos José Seoane e Emilio Taddei, de CLACSO, reveladores do pensamento das esquerdas:

“Batizada como ‘internacional rebelde’ (Ramonet, 2001) ou ‘internacional das resistências’ (Lowy, 2001) seus contornos evocam, como assinala Manuel Moreneo no presente livro, a Primeira Internacional. ....

“O arco social que se fez presente em Porto Alegre é sem dúvida mais amplo do que aquele reunido em Londres em 1864 ao calor dos sindicatos ingleses e franceses. Assim as fronteiras do movimento antimundialização neoliberal transcendem, e de muito, os limites do movimento operário .... A amplitude e heterogeneidade desta aliança social pode ser apreciada, por exemplo, nas associações que subscrevem o “Apelo de Porto Alegre”....

 “O mundo que construiu esta experiência internacional, e de que Porto Alegre foi uma expressão cabal, soube fazer da diversidade, estimulada no aprendizado mútuo e no respeito da diferença, um elemento de força e não de debilidade. Estas práticas se alimentam ademais de um espírito democrático e libertário.

“Não se trata, cremos, de uma visão ingênua nem idílica, onde as diferenças se adormecem ou desaparecem. Pelo contrário faz das diferenças, dos debates e das tensões uma realidade cotidiana. Nós que passamos por Porto Alegre sentimos o estímulo deste espírito, desta construção de um mundo onde, como fala a voz zapatista, caibam todos os mundos possíveis” (De Seattle a  Porto Alegre – Pasado, Presente y Futuro del movimiento antimundialización neoliberal).

[22] Cfr. números 473 e 474 (1ª e 2ª quinzena de maio de 2001), da “Carta a las Iglesias”, revista publicada pelos jesuítas da Universidad Centro Americana (UCA), de El Salvador.

[23] Em recente reunião plenária, a Pontifícia Comissão para América Latina denunciou “a persistência de uma ‘Teologia da Libertação’ contrária à doutrina católica, que agora se apresenta também com novas manifestações, como a teologia indígena, o feminismo extremo e o ecologismo ideologizado” (cfr. La TdL è viva ed è più cattiva del neoliberismo. Atti della Riunione Plenaria della Comissione Vaticana per l´America Latina,  “Adista”, n° 71, 15-10-2001).

Como a confirmar a denúncia vaticana, realizou-se em Quito, de 24 de setembro a 1º de outubro de 2001, a V Assembléia geral das Associações dos teólogos do Terceiro Mundo [Eatwot],  na qual participaram 62 teólogos, homens e mulheres, provenientes de 29 países da Ásia, África, Oceania e América Latina. Na declaração final afirmam que “as nossas teologias, como Eatwot, com sua opção pelos menores dentre nós, formam um coro polifônico que consiste num pensamento sistemático e ético, no trabalho bíblico, nas teologias indígenas, nas teologias negras, feministas e nas preocupações ecológicas pela mãe terra. Reafirmamos os passos feitos na teologia pela libertação com sua miríade de desenvolvimentos”.

Por sua vez, o jornalista Juan G. Bedoya, na edição de 2 de novembro de 2001 de “El País”, de Madri, pergunta: “Morreu a Teologia da Libertação?”. E responde: “Uma resposta aparece nestes dias publicada pela editorial Verbo Divino, de Estella (Navarra), na qual Juan José Tamayo e Juan Bosch apresentam os trabalhos de 34 teólogas e teólogos latino-americanos .... O livro se intitula Panorama de la teología latinoamericana e é, não pode ser mais bem dito, um panorama de conjunto das cinco grandes linhas ou correntes, todas elas complementares, da Teologia da Libertação de ontem e de hoje: teologia sistemática da libertação, teologia feminista da perspectiva de gênero, teologia indígena, teologia negra, teologia e economia, teologia ecológica”. Concluindo que “a Teologia da Libertação não morreu, mas goza de excelente saúde”.

[24] Veja-se, por exemplo, o aspecto demagógico dos seguintes parágrafos de um artigo de Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT), publicado no boletim da Attac França:

Acabamos por nos habituar a esta guerra total, a mais mortífera de todas as que a história da humanidade jamais conheceu. A expressão máxima da dominação internacional. O maior crime do capitalismo. ....

“Se alguma solidariedade conjunta pode salvar nossa América do desmoronamento econômico e social ao qual o Primeiro Mundo  e seus mecanismos nos condenam, seria a vontade conjugada, ‘latino-americanamente’ unida, de não pagar a Dívida Externa” (cfr. Dette = mort, “Grain de Sable”, n° 150, 11-7-2000).

[25] Valemo-nos da expressão que serve de título para o profundo estudo do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira Baldeação Ideológica Inadvertida e Diálogo, Vera Cruz, São Paulo, 5a ed., 1974.

[26] A iniciativa foi de Martin Dent, professor da Universidade de Keele, Bill Peters, ex-embaixador no Malawi e de Isabel Carter, editora do boletim de Tearfund, associação evangélica de ajuda humanitária.

[28] Cfr. Des luttes et des courriers électroniques d’information, “Grain de Sable”, n° 79,  15-10-1999.

[29] Cfr. Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair, El nuevo movimiento por qué estamos peleando, in De Seattle a Porto Alegre, CLACSO, Buenos Aires, 2001.

[30] Cfr. Denise Mendez, Au coeur de l’empire, “Grain de Sable”, n°180, 27-10-2000.

[31] Cfr. Pierre Rousset , A l'occasion du sommet ASEM 3 d'octobre, “Grain de Sable”, n°184,  10-11- 2000.

[32] É oportuno notar que este semanário de esquerda católica é um dos fundadores da Attac e seu diretor, Bernard Ginisty, é o tesoureiro da associação.

[33] Cfr. “Grain de Sable”, n°176, 13-10-2000.

[34] Em entrevista a José Arbex, para um número especial da revista “Caros Amigos” consagrada ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o Cônego Houtart é apresentado como “assessor de Fidel Castro para assuntos religiosos”. Perguntado se  ainda mantém relações com Cuba e Fidel Castro,  responde prontamente: “Sim, claro”; e afirma mais à frente: “Vou a Cuba várias vezes por ano” (cfr. Não há terceira via possível, “Caros Amigos”, nº 8, março 2001, p. 14).

[35] Cfr. Stéphane Mandard, Teólogo da resistência – François Houtard, sacerdote e militante, aplica o Evangelho à mundialização, in “Le Monde”, 31-10-2001.

[36] Cfr. Relação de Oficinas para Publicação, no site www.portoalegre2002.org

[37] Cfr. Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, Informe do Grupo de Trabalho, no site do FSM 2002.

[38] “Cadernos do Terceiro Mundo” põe como legenda da respectiva fotografia: “Manifestações dos mais variados interesses sociais marcaram presença em Porto Alegre, entre eles a luta feminista, que inclui a defesa do direito das mulheres em fazer aborto” (cfr. nº 228, jan/fev/2001, p. 22).

[39] Cfr. “Adista”, n°75 de 29-10-2001:

“Roma-Adista. Prosseguiram os trabalhos da conferência Os excluídos retomam a palavra.

“Significativa a mensagem que  Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, Brasil, quis enviar aos participantes da conferência e que foi lida na conclusão dos trabalhos. Casaldáliga manifesta-se confiante na construção de uma sociedade ‘sem privilégios e sem exclusões. Sem mundos diferentes. Dentro da única humanidade. Na grande família dos filhos e filhas de Deus. Através de uma política que subordine a economia à dignidade das pessoas e dos povos. Numa inter-solidariedade, que favoreça simultaneamente a igualdade e a alteridade. Queremos e podemos ser uma humanidade nova. Numa terra nova. Na construção e na esperança da Terra sem males, mito, promessa e tarefa dos nossos povos indígenas e da nossa fé cristã’”.

[40] A declaração Porto Alegre convoca para as mobilizações foi assinada, entre outras, pelas seguintes organizações oficialmente católicas ou integradas por personalidades ou instituições católicas: Centre Tricontinental, Louvain-La-Neuve (Bélgica), Communità impegno servizi volontariato (Itália), Holy Cross Justice Commission, Jubileo Sur, Korean Catholic Coalition for Alternative Economics (Coréia), Pastoral da Juventude Rural do Brasil, Paz y Tercer Mundo (Espanha), Rete di Lilliput (Itália), Rete Radie Resch (Itália).

[41] Cfr. Etat-nation, nationalisme, globalisation, internationalisme, no site www.Attac.org

[42] Em sua obra mestra, Plinio Corrêa de Oliveira descreve a causa profunda da Revolução nos seguintes termos:

 “O orgulho leva ao ódio a toda superioridade, e, pois, à afirmação de que a desigualdade é em si mesma, em todos os planos, inclusive e principalmente nos planos metafísico e religioso, um mal. É o aspecto igualitário da Revolução.

“A sensualidade, de si, tende a derrubar todas as barreiras. Ela não aceita freios e leva à revolta contra toda autoridade e toda lei, seja divina ou humana, eclesiástica ou civil. É o aspecto liberal da Revolução.

“Ambos os aspectos, que têm em última análise um caráter metafísico, parecem contraditórios em muitas ocasiões, mas se conciliam na utopia marxista de um paraíso anárquico em que uma humanidade altamente evoluída e `emancipada' de qualquer religião vivesse em ordem profunda sem autoridade política, e em uma liberdade total da qual entretanto não decorresse qualquer desigualdade” (cfr. Revolução e Contra-Revolução, idem, pp. 13-14).

Tal visão das paixões humanas desregradas – como constituindo elas o motor da Revolução – é também a de um famoso dissidente do marxismo nascente, Mikhail Bakunin, pai do mesmo anarquismo que anima o Black Bloc, os Tute Bianche e muitos dos contestatários atuais:

“Nós entendemos a Revolução no sentido daquilo que hoje se chama de desencadeamento das más paixões e a destruição do que na mesma língua se chama de 'ordem pública'.

“Não tememos, invocamos a anarquia, convencidos de que desta anarquia, quer dizer, da manifestação completa da vida popular desencadeada deve surgir a liberdade, a igualdade, a nova ordem e a própria força da revolução contra a reação” (Michael Bakounin, Socialisme Libertaire et Autoritaire, pp. 336, 337).

[43]Num artigo intitulado 1770-1970: uma visão de conjunto, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira resumiu essa longa, mas inexorável evolução. Sob os Bourbons (1815-1830) os adversários da Revolução só pensavam em aproveitar a vida, enquanto a Revolução preparava um "estouro" para encerrar a fase dos recuos estratégicos e inaugurar a primeira fase do avanço processivo. Esta não consistiu na implantação direta da república, porém na "republicanização" da monarquia. Com a ascensão de Luiz Filipe, de fato, a burguesia subiu ao poder e a nobreza saiu do primeiro plano da vida política. Mais tarde, em l848, a Revolução derrubou Luiz Felipe, e durante um curto intervalo republicano (1848-1851) elegeu para a presidência da república um príncipe plebeu e ainda mais marcadamente usurpador, isto é, Luiz Napoleão Bonaparte, que não tardou a se proclamar imperador, sob o nome de Napoleão III, e governou até 1870. Seu regime foi ainda mais "republicano", burguês e laico do que o de Luiz Filipe. Com a queda de Napoleão III, resultante da vitória da Prússia, proclamou-se a III República e a burguesia conquistou finalmente o poder. Em 100 anos ininterruptos de república, na França houve uma decadência lenta e contínua do poder burguês e uma penetração gradual do espírito socialista até nas fileiras do Clero e da burguesia.

Em suma, ao cabo de 200 anos tudo caminha na França para a plena realização do programa dos “terroristes”, dos "montagnards", dos "cordeliers" e do comunista Babeuf  (cfr. “Folha de São Paulo”, 22-2-1970).

[44] De fato, nas barricadas de Paris, em maio de 1968, no meio da desordem, da promiscuidade sexual mais desenfreada e de explosões irracionais de violência, novas tendências anarquistas haviam irrompido.

Movimento de contestação que não se levantava em nome da classe operária, nem era canalizado através dos partidos políticos, ele se apresentava como a luta da sensibilidade libertária das novas gerações contra as antigas e seu sistema de valores. Eram contestadas radical e simultaneamente todas as formas de autoridade e de coação legal ou moral, tanto no âmbito individual como na vida coletiva. Daí o seu lema: “É proibido proibir”.

“A imaginação no poder”, gritavam os estudantes de Maio de 68. Era uma revolução que propugnava, no plano individual, uma libertação dos instintos contra a estrutura psíquica do homem modelado pela Civilização Cristã, em quem a inteligência iluminada pela fé e a vontade dominam a sensibilidade e as paixões.

No plano coletivo o reflexo disso era uma ojeriza profunda a qualquer estrutura familiar, escolar, política etc., a todo planejamento e a toda forma de vida organizada. Frases como “enforcaremos o último economista com as vísceras do último sociólogo” ou “sob o asfalto, a praia” faziam parte da panóplia de slogans, não desprovidos de fantasia, que os contestatários franceses escreveram nos muros de Paris.

A nebulosa de “centros sociais alternativos” e o movimento ecologista foram o que restou de concreto da abortada Revolução. Aproveitando a desprevenção geral que se seguiu à cessação desses acontecimentos, a influência de Maio/68 penetrou como uma mancha de azeite em todas as camadas da população, mudando as mentalidades, os costumes, os modos de vestir e de falar. O próprio líder aparente da revolta, Daniel Cohn-Bendit, reconheceu numa entrevista que “os traços mais visíveis de 68 se apreciam no comportamento das pessoas, em seus hábitos, em sua vida cotidiana – a educação, o feminismo, a cultura” (cfr. “The New York Times”, 1-9-1986).

[45] Cfr. Three Coins in a Centri Sociali, “Globe & Mail”, Toronto, 7-6-2001.

[46] Cfr. no site Internet do FSM, documento de “O São Paulo”, 9-4-2001.

[47] Cfr. Susan George Les violences de Göteborg, “Grain de Sable”, n° 248,  26-6-2000.

[48] No caso da “Batalha de Seattle”, milhares de estudantes, ecologistas, feministas, camponeses, ativistas de direitos humanos, disfarçados de tartarugas verdes, caminharam para o centro da cidade e bloquearam os cruzamentos das ruas. Os estudantes realizaram sit in defronte aos hotéis das delegações oficiais e sobretudo em torno do Centro de Convenções, onde estava prevista a cerimônia de abertura da Rodada do Milênio. O Memorial Stadium foi cenário de um multitudinário Labor Rally, do qual participaram 30 mil militantes sindicais. Terminado o ato, 50 mil pessoas caminharam pelas ruas de Seattle e bloquearam as reuniões nos hotéis, numa manifestação que fez fracassar a sessão de abertura da Organização Mundial do Comércio (OMC). A polícia tentou dispersar os manifestantes com gases lacrimogêneos e durante toda a noite travou-se uma verdadeira batalha nas ruas, desfechando na detenção de milhares de ativistas. As arruaças prolongaram-se por mais três dias, quando explodiram divergências no seio da própria OMC entre representantes dos países do Terceiro Mundo e países industrializados. No quarto dia, a gazeta local “The Seattle Times” trazia em seu título: “Entram em colapso as conversações, a reunião termina”. A Rodada do Milênio havia naufragado.

[49] Cfr. op. cit.

[50] “Folha de São Paulo”, 26-7-2001; transcrito no site do FSM, no diretório da Biblioteca das Alternativas.

[51] Cfr Cinq paysans aveyronnais emprisonnés, “Grain de Sable”, n°64, 24-8-1999.

[52] Cfr. Les violences de Göteborg, “Grain de Sable”, n° 248,  26-6-2001.

[53] Isso aconteceu por exemplo em Praga, onde a associação Friends of the Earth retirou de antemão sua solidariedade à manifestação “ante o risco de violências” (Cfr. Quelques leçons de Prague, “Grain de Sable”, n°175,  10-10-2000.)

Em Québec, os sindicatos da província francófona estavam preocupados em afastar os manifestantes o mais possível do muro erigido pela polícia (Cfr. Québec. Un bilan, “Grain de Sable”, n° 232, 1º-5- 2001).

[54] Cfr. Christophe Aguitton, Quelques éléments pour la discussion après Gênes, “Grain de Sable”, n° 260,  28-8-2001.

[55] Ver Alain Deneault - Attac-Québec, Le revirement historique de Seattle, “Grain de Sable”, n° 95, 14-12-1999; Laurent Jésover, webmaster, Avril à Washington, “Grain de Sable”, n°123, 4-4-2000; cfr. Christophe Aguitton, Quelques éléments pour la discussion après Gênes, “Grain de Sable”, n° 260, 28-8-2001.

[56] Cfr. Quelques leçons de Prague, “Grain de Sable”, n°175,  10-10-2000.

[57] Cfr. Quelques leçons de Prague, “Grain de Sable”, n°175,  10-10-2000.

[58] Cfr. Québec. Un bilan, “Grain de Sable”, n° 232, 1º-5-2001.

[59] Bienvenue à Göteborg en juin, Attac Göteborg, “Grain de Sable”,  n° 242, 5-6-2001.

[60] Quelques éléments pour la discussion après Gênes, “Grain de Sable”, n° 260 – 28-8-2001.

[61] Cfr. Benito Perez, Neuf mouvements lancent un ‘Appel contre la terreur policière’, “Le Courrier de Genève”, 21-6- 2000.

[62] Cfr. Les violences de Göteborg, “Grain de Sable”, 246 – 19-6-2001.

[63] Cfr. Benito Perez, Neuf mouvements lancent un ‘Appel contre la terreur policière’, “Le Courrier de Genève”, 21-6- 2000.

[64] Les violences de Göteborg, “Grain de Sable”, .n° 247, 22-6-2001.

[65] Ibidem.

[66] Cfr. Göteborg, Salzburg et l’avenir, “Grain de Sable”, n° 248,  26-6-2001.

[67] Algumas reflexões sobre a violência e o estado do movimento, “Grain de Sable”, nº 258, 21-8-2001.

[68]   Les violences de Göteborg, “Grain de Sable”, n° 247, 22-6-2001.

[69] Cfr. La nueva guerra contra el terror, transcrita no site Internet do FSM.

[70] De ore tuo te judico (Lc 19, 22).

[71] Cfr. Padre Zanotelli, La vigilia del G8 vista da Korogocho, “Adista”, nº  46, 18-6-2001.

“Nigrizia” fez uma paródia – desrespeitosa é o menos que se pode dizer – do cântico de Nossa Senhora,  que o jornal “Libero” publica sob o título ‘Magnificat jeans’ – Quando Nigrizia exaltava a contestação:

“Meu coração exulta de alegria no Senhor, meu corpo vibra com a vinda do Libertador, porque se indignou com a opressão desta sua pequena serva. .... Arregaçou as mangas com ira e desmontou o pensamento único dos plutocratas. Arruinou suas poltronas giratórias e colocou os excluídos em suas escrivaninhas. Distribuiu comida sadia e em abundância aos que tinham fome, enviou os hipernutridos a ganhar o pão com seu suor. Veio em socorro do povo da Terra, lembrando a verdadeira religião que havia sonhado no início para seus filhos de todas as gerações, para sempre” (cfr. ed. de 6-9-2001, p. 9).

[72] Outro exemplo marcante é o da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB). Faz parte da “liturgia” da CPT que ela publique periodicamente um balanço da violência havida no campo (pendendo sempre, é claro, para o lado dos sem-terra, nunca dos proprietários). Já em 1998, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará, através de seu “Grupo Especial de Trabalho sobre Assassinatos no Campo (Getac)”, contestou publicamente os dados da CPT. A Getac englobava instituições como Tribunal de Justiça, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil, Federação dos Trabalhadores na Agricultura e Polícias Militar, Civil e Federal. Mostrou o Getac que, pelo menos 209 dos casos então apontados pela CPT, nada tinham a ver com disputas de terras. Tratava-se de crimes passionais, mortes por bebedeiras, brigas, questões trabalhistas e até abortos e suicídios. A CPT havia catalogado tudo isso como luta pela terra... É muita vontade de ver conflitos sociais! A coordenadora do Getac na ocasião, Onéia Dourado, desafiou: “A CPT está  com medo que a verdade venha à tona. Ninguém tinha feito um trabalho de pesquisa sobre esses números, mas agora podemos afirmar que eles são irreais” (“O Liberal”, Belém e “O Estado de S. Paulo”, 19-4-98). Além disso, no próprio balanço da Reforma Agrária brasileira (período 1995-1998) entregue pelo Ministro Raul Jungmann ao Papa João Paulo II informa-se que os relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre violência no campo, agregam “muitas vezes casos passionais que nada têm a ver com a questão agrária”! Mais recentemente, em dezembro de 2001, a mesma CPT denunciou que o número de mortes no campo aumentara de 21 (no ano 2000) para 29 (em 2001). Ora, levantamento da Ouvidoria do Ministério de Desenvolvimento Agrário do governo brasileiro mostrou que o número de mortes em 2001 foi de 18 (“O Globo”, 20-12-2001).

[73] Segundo Christophe Aguitton, da Attac, foi em Porto Alegre que os participantes italianos do FSM, entre eles Vittorio Agnoletto, definiram “o quadro que iria preparar a mobilização de Gênova” (cfr. Quelques éléments pour la discussion après Gênes, “Grain de Sable”, n° 260, 28-8-2001).

[74] Cfr. G8 sì, G8 no: I cattolici si dividono, “Adista”, nº  54, 16-7-2001.

[75] Cfr. “Adista”, nº  50, 2-7-2001.

[76] Cfr. Giacomo Galeazzi, Genova, l'assalto alla politica dei Wojtila Boys, “La Stampa”, 9-7-2001, extraído do site: http://www.giovanidelleacli.org.

[77] Cfr. Un altro mondo è possibile. Il Genova Social Forum e Le cose dell’ ‘altro mondo’” al  Genoa Social Forum, “Adista”, nº 57, 28-7-2001.

[78] Ver Scusate il ritardo: I DS tentano il ricupero sulle proteste di Genova, “Adista”, nº  49, 30-6-2001.

[79] Trata-se de um conglomerado criado pouco antes de Seattle por uma miríade de associações católicas, grandes e pequenas, cujo programa econômico alternativo funda-se na “procura da igualdade” e visa “introduzir profundas mudanças no modo de gerir as riquezas, de conceber o trabalho, de organizar a produção”, ou seja “construir uma outra economia .… fundada sobre a sobriedade, sobre a eqüidade, sobre a  sustentabilidade”.

Adotaram o nome de Rede Lilliput porque as associações que a formam se dizem pequenos lilliputianos, frágeis quando isolados, mas capazes de imobilizar o gigante Gulliver – o capitalismo globalizado – quando agem em conjunto. No plano operativo, a idéia de rede vem da necessidade de não “criar hierarquias” nem “perder a riqueza das mil diferenças” (cfr.  Gettare la rete, no site da associação).

[80] Cfr. Avanti popolo di Seattle! Contestatori uniti contro il G8, “Adista”,  nº  46, 18-6-2001.

[81] Cfr. “O Estado de S. Paulo”, 19-7-2001.

[82] Cfr. Rispetteremo la città e non ci saranno attacchi contro le persone  – Comunicato del Genoa Social Forum sulle forme di mobilitazione, “Adista”, nº  46, 18-6-2001.

[83] Cfr. Avanti popolo di Seattle! Contestatori uniti contro il G8, “Adista”,  nº 46, 18-6-2001.

[84] Cfr. Preti in corteo? Legíttimo, “Corriere della Sera”, 21-7-2001.

[85] O Pe. Gallo define-se a si próprio como “cidadão, democrata, laico, antifascista e sacerdote, coordenador da Comunità san Benedetto al Porto di Genova” (cfr. Interviste ad Enrico Peyretti e a Don Andrea Gallo, “Adista”, nº  51, 5-7-2001) e escandalizou os católicos italianos facilitando a uma prostituta a realização de um aborto (cfr. Andrea Tornielli,  La predica di Don Gallo: sono comuniste e me ne vanto, “Il Giornale”, Milão, 24-8-2001).

[86] Cfr. Comunicato del Consiglio dei portavoce delle Tute Bianche di Sant'Angelo a Scala, “Adista”, nº 53, 14 luglio 2001.

Não era a primeira vez que o Pe. Vitaliano dava escândalo. Já durante o Jubileu tinha sido ameaçado de sanções canônicas por ter participado do desfile do orgulho homossexual, convocado para Roma em claro desafio ao ensino tradicional da Igreja Católica sobre a homossexualidade.

Em matéria de arruaça, Gênova tampouco era seu batismo de fogo. Já meses antes, em Praga, tinha se assinalado por seus instintos belicosos, segundo relata um jornalista espanhol presente aos distúrbios na capital checa: “Em meio à batalha, o Pe. Vitaliano, pároco de Avellino, ajudava os manifestantes em suas tentativas de romper o cerco  que protegia os milhares de delegados do FMI e do BM” (cfr. Jesús Ramírez Cuevas-Masiosare, Praga: El cuerpo como arma de la desobediencia civil (texto retirado do site do Kolectivo La Haine).

[87] Cfr. Benedetto Vecchi, Don Vitaliano - Così difese il blindato, “Il Manifesto”, 23-10-2001.

[88] Cfr. Don Vitaliano sulle barricate: “Vai, vai.”, “Il Giornale”, 24-10-2001. A difusão da participação ativa do sacerdote nos incidentes levou o Sindicato da Polícia a escrever uma carta à Comissão Disciplinar da Cúria Romana, exprimindo a “amargura” dos policiais, assim como seu “desconcerto pelo comportamento de um religioso que, assim como nos foi ensinado, deveria ter no coração a vida de todos, prescindindo da ideologia política”.

[89] Cfr. Card. Silvano Piovanelli: ‘ho nel cuore tristezza e vergogna’,  “Corriere della Sera”, 27-7-2001.

[90] Cfr. Attaccati dal Governo, i preti non cedono: "Genova non va rinnegata", “Adista”,  nº 59, 1º-9-2001.

[91] Ibidem.

[92] Cfr. Elisabetta Rosaspina, Il Cardinale Tettamanzi: non cambio idea, “Corriere della Sera”, 23-7-2001.

Entretanto, em posterior entrevista ao Avvenire (o periódico do Episcopado italiano), recuou um pouco, dirigindo-se aos contestatários: “Não se pode ditar condições ao mundo inteiro, em grupos recorrendo à violência. .... Este povo variegado tem necessidade de reencontrar em seu interior clareza, longe da ambigüidade” (cfr. Attaccati dal governo, i Preti non cedono: "Genova non va rinnegata", “Adista”, nº 59, 1º-9-2001).

[93] Cfr. Cattolici no-global: Resa dei conti su Genova, “Adista”, nº 59, 1º-9-2001.

[94] Cfr. Ibid. e Declaração Genova 16-22 luglio 2001 no site da Rede Lilliput.

[95] Cfr. G8 sì, G8 no: I cattolici si dividono, “Adista”, nº  54, 16-7-2001.

[96] Cfr. ‘Quei sovversivi dei Vescovi liguri’: Don Baget Bozzo sposa gli ‘Otto grandi’, “Adista”,  nº 55, 21-7-2001.

[97] Cfr. Il "mal d'Occidente" dei cattolici e la fedeltà evangelica. Polemica tra "CORSERA" e "AVVENIRE", “Adista”, n° 62, 10-9-2001.

[98] Cfr. Mondo cattolico, l’ultima tentazione. Se in Chiesa entra Marx, “Adista”, n° 62, 10-9-2001.

[99] Cfr. La simplicidad equivocada de algunos análisis antiglobalización, “Zenit”, 24-7-2001.

[100] Cfr. Educhiamo col Vangelo, non con Marx, “Adista”, n° 62, 10-9-2001.

[101] Marco Frenette, Entre o Céu e a Terra, Forum – Outro mundo em debate, Editora Brasil Publishers, número 2.

[102] Um porta-voz da CNT, o sindicato anarquista espanhol, declarou explicitamente: “Não penso que existam muitas diferenças entre a concepção da sociedade final a que nós, socialistas, comunistas e libertários [anarquistas], aspiramos. As diferenças proviriam mais bem dos meios e das etapas precedentes” (cfr. Sergio Fanjul, Modelos de transición al socialismo, pp. 131-132, in España anestesiada – A obra do PSOE, Editorial Fernando III el Santo, Madrid, 1988, p. 148).

É também eloqüente o testemunho de Manuel Moreneo, ativo participante do Fórum de Porto Alegre e presidente de Izquierda Unida, o bloco “ortodoxo” do marxismo espanhol, a respeito da necessidade de uma nova convergência das componentes da esquerda como houve na Primeira Internacional:

“Creio que a esquerda tem que reconstruir uma internacional, não qualquer internacional, mas a Primeira. O porquê disso, eu o resumo, esquematicamente, em três argumentos:

“Primeiro: pela necessidade de refundar um novo projeto emancipatório. Os três grandes projetos que surgem da Primeira Internacional (libertário, social-democrata e comunista) estão esgotados historicamente, como projetos socialmente críveis e como definições políticas precisas. ....  Falta um instrumento, uma organização que permita o surgimento e desenvolvimento de um novo projeto anticapitalista e uma nova perspectiva socialista, que nos permita avançar sob outras formas de intervenção política e coordenar as lutas e as ações a partir da diversidade.

“Segundo: não se trata de criar secções nacionais da Internacional, mas de uma organização transversal a toda a esquerda, que tenha como objetivo a transformação do mundo e de todas e cada uma de nossas sociedades” (cfr. Propuestas para un nuevo internacionalismo, na seção Balanços sobre o FSM 2001, do site do FSM).

[103] Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª ed., 1998, p. 46.

[104] Este texto é de 1976, anterior portanto à perestroika e à metamorfose ocorrida na Rússia soviética. Já então Plinio Corrêa de Oliveira discernia o que estava ocorrendo em profundidade.

[105] Cfr. Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª ed., 1998, pp. 183-185.

Os representantes da IV Revolução têm bem presente que eles são os herdeiros de um único processo revolucionário, começado há cinco séculos. Veja-se, por exemplo, esta “declaração de guerra” dos Tute Bianche:

Tute Bianche, [Internet], julho de 2001

“Das multidões da Europa, levantando-se contra o Império e marchando em Gênova.

“Somos novos, e ainda assim somos os mesmos de sempre. Somos antigos para o futuro, um exército da desobediência. Por séculos marchamos, tomando a História como arma, ‘dignidade’ é a divisa de nossos brasões.

“Somos os camponeses da Jacquerie. Nossas cidades foram destruídas pelos mercenários da guerra dos Cem Anos e os nobres nos fizeram morrer de fome. No ano de Nosso Senhor de 1358 tomamos armas, destruímos seus castelos e resgatamos o que tiraram de nós desonestamente. Somos os trabalhadores das fábricas e dos pequenos ofícios. No ano de Nosso Senhor de 1378 uma lei nos levou à rebelião. Somos os camponeses da Inglaterra que lutaram contra os nobres. Somos os Hussitas. Somos os Taboritas, a ‘República dos Iguais’, o exército dos camponeses e dos mineiros que seguiram Thomas Münzer, os servos e mineiros, fugitivos e desertores que se juntaram aos cossacos de Pugachev para derrubar a autocracia da Rússia.

“Hoje eles têm um novo império, impõem novas servidões em todo o globo, ainda brincam de nobres e senhores da terra e do mar. Novamente, nós, as multidões, nos levantamos contra eles.

“Gênova, 19, 20 e 21 de julho do ano que não pertence a Senhor algum”.

[106] Noam Chomski, The Guardian Profile, por Maya Jaggi, 20-1-2001.

[107] Noam Chomski, professor no Massachusets Institute of Technology, mais do que em sua especialidade, a linguística, costuma ser citado em Ciências Humanas. Nos Estados Unidos, ele é igualmente conhecido por sua feroz oposição à política exterior norte-americana e por suas idéias políticas radicais.

[108] Cfr. Noam Chomsky, Notes on Anarchism, 1970, publicado em “For Reasons of State”, 1973.

[109] Cfr. Michael Slaughter, A Phone Call to Noam Chomski, Peace Works.

[110] Noam Chomsky, Force and Opinion, , “Z Magazine”, julho/agosto 1991.

[111] Noam Chomsky, Sobre la sociedad anarquista Conversación con Peter Jay, site do sindicato anarquista espanhol CNT.

[112] Noam Chomsky, The Soviet Union Versus Socialism, “Our Generation”, vol. 17, nº 2, primavera-verão, 1986, pp. 47-52.

[113] Cfr. Ed Vulliamy, ‘Imperio’ devuelve el golpe, ¨El Mundo¨, Madrid, 21-7-2001.

[114] Informação fornecida por Thomas Atzert de Frankfurt (Alemanha) durante um chat informático com Toni Negri e Michael Hardt, Negri/Hardt chat about Empire, promovido pelo webmaster do site bn.com

[115] Durante o Fórum Social Mundial, Mary Garcia Castro aproveitou sua palestra para fazer numerosas referências e uma longa citação de Império (cfr. Biblioteca das Alternativas, site do FSM). Enquanto outros, como Aníbal Quijano, Ricardo Alarcón de Quezada e Emir Sader denunciavam com insistência o “Império”, em clara referência ao livro. Num dos sites de Internet ligados à organização do II Fórum Social Mundial (www.portoalegre2002.org), uma pesquisa dos artigos recomendados aos visitantes que incluíssem os nomes de Negri e Hardt em seus textos dava um resultado de 18 documentos.

[116] Cfr. Ed Vulliamy, ‘Imperio’ devuelve el golpe, “El Mundo”,  Madrid, 21-7-2001.

[117] Cfr. Le philosophe est incarcéré a Rome – Amnistie pour Toni Negri, “Libération”, Paris, 3-7-1997; Vers l´agonie des Etats-Nations – L´Empire, stade supreme de l´imperialisme, “Le Monde Diplomatique”, Paris, Janeiro de 2001; Between "historic compromise" and terrorism – Reviewing the experience of Italy in the 1970s, “Le Monde diplomatiique”, August-September 1998; e artigo de Michael Hardt sobre Toni Negri  e sua intenção de voltar à prisão na Itália originalmente publicado no “Dagens Nyheter” da Suécia, difundido no web site http://www.emery.archive.mcmail.com/public_html/toni_negri/hardt.html.

[118] Michael Hardt nasceu em 1960 em Washington DC, estudou Engenharia, doutorou-se em Literatura Comparada. Redigiu em Paris, sob a direção de Negri, uma tese sobre a Itália dos anos 70. No mesmo período, Hardt trabalhou na Guatemala e em El Salvador para o Movimento Santuário cristão, que dava asilo para refugiados em igrejas. Atuou no departamento de Língua Italiana da Universidade da Carolina do Sul, Los Angeles, a tempo de viver os tumultos de 1992. Em 1994, assumiu uma cátedra de literatura na Duke University da Carolina do Norte e começou a trabalhar no Império. Depois de sua publicação, foi nomeado catedrático titular.

[119] Michael Hardt e Antonio Negri, Império, tradução para o português de Berilo Vargas, Editora Record, Rio-São Paulo, 2001, p. 233.

[120] Idem,  p. 234.

[121] Idem, p. 236.

[122] Idem, p. 224.

[123] Idem, p. 435.

[124] Idem, p. 437.

[125] Idem, p. 235

[126] Idem, p. 236.

[127] Cfr. Discorsi e Radiomessagi di Sua Santità Pio XII, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. VI, pp. 238/240. Os números que dividem a distinção entre povo e massa são nossos.

[128] Fala-se aqui de Reino. Mas é bom ter presente que não apenas uma monarquia pode constituir uma sociedade orgânica. Como lembrava freqüentemente o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, também as formas de governo republicanas ou democráticas podem ser vividas de modo orgânico. Como exemplos históricos mais conhecidos citamos a república aristocrática de Veneza e os cantões suíços, eminentemente populares (cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Editora Civilização, Porto, 1993, Apêndice III, pp. 213-239).

[129]  Catolicismo, nº 11, novembro de 1951.

[130] Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª ed., 1998, p. 93.

[131] “A alma humana é naturalmente cristã” (Tertuliano).

[132] Plinio Corrêa de Oliveira, Auto-retrato filosófico, in Catolicismo, outubro de 1996.